segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Procura-se

Procura-se um cachorro perdido, uma criança desaparecida, um carro roubado, um emprego. Procura-se um tapete lilás, um apartamento novo, uma doença, um marido.

Alfredo procurava uma doméstica, a moça dos anúncios classificados pediu que ele repetisse mais de uma vez o que desejava: “Procura-se uma empregada que não fale com o patrão”. Sim, era isso o que ele queria que saísse no jornal de domingo, a pessoa não precisava ser muda, apenas calada. Sua última empregada, D. Valdete, havia transformado seus dias em um inferno de palavras ditas, nunca imaginou que alguém pudesse pronunciar tantas frases e emendar assuntos desconexos como se fizessem parte da mesma trama. Por vezes, pegou-se duvidando de sua própria capacidade de interpretar o que ela lhe dizia, afinal, perdia-se no meio da história e, claro, era melhor não tentar esclarecer com ela suas dúvidas, pois isto seria motivo para mais assunto. No início, a observava espantado esperando que a mulher fizesse uma pausa de alguns segundos para respirar. Em seus pensamentos chegava a vê-la arroxeando as bochechas e caindo desmaiada por falta de ar, mas não, ela tinha uma técnica incrível, falava sem parar e respirava ao mesmo tempo.

Nos anúncios, Alfredo buscava as mais diversas coisas, sempre gostou de ler os classificados, mas até nisto aquela infeliz lhe atrapalhava. Um dia, achando que o jornal tivesse vindo pela metade, ele resmungou reclamando:

- Era só o que me faltava, meu jornal foi entregue faltando uma parte.

D. Valdete, muito prestativa, retrucou, como se ele tivesse lhe dirigido a palavra:

- Não, seu Alfredo, seu jornal veio completo, eu é que peguei os classificados, que não servem para nada mesmo, e usei para limpar os vidros, tiram a gordura e não deixam um risco sequer. Ah! O senhor prefere frango ou guisado para o almoço? A empregada do apartamento vizinho me contou que a patroa dela está de namorado novo, o que é que o senhor acha? Está meio passada, é uns anos mais velha que eu, acho até que regula em idade com o senhor...

Ela continuou falando, ele se deixou cair mudo e vencido sobre o sofá.

Alfredo procurava sobreviver às overdoses verbais impostas pela empregada. Numa manhã chuvosa de sábado, pensava sobre o que lhe seria mais conveniente, comprar protetores de ouvidos, mandá-la calar a boca ou despedi-la. Também imaginava, ansioso, o quão prazerosos seriam a tarde daquele dia e o domingo. D. Valdete, aos sábados, ia embora após o almoço e ele, finalmente, ficaria sozinho, poderia ler os classificados e ver televisão sem ser interrompido por nenhum comentário descabido.

- Seu Alfredo, o senhor prefere os ovos bem cozidos ou com a gema mole?

Ela sabia a resposta, toda a vez fazia a mesma pergunta.

- São bem cozidos, D. Valdete.

O senhor deveria variar o cardápio do sábado, seu Alfredo, sempre risoto e ovos cozidos, não enjoa não? Posso fazer uma feijoada para o próximo, quem sabe uma lasanha, isto sim é que é almoço de sábado, aprendi a fazer umas almôndegas que o senhor ia adorar. Lembra do namorado novo da vizinha, parece que trocou ela por outra mais nova, eu bem que falei que não ia dar certo, agora a velha quer fazer uma plástica, se esticar mais não vai adiantar nada, o porteiro me disse que ele mandou umas flores terminando tudo e ela fez um escândalo na portaria.

Na sala, sentado em sua poltrona reclinável, Alfredo sacudia os pés e mal conseguia segurar o jornal, tremia de irritação. A voz daquela mulher reverberava em sua cabeça, causando-lhe náuseas e embaralhando seus pensamentos. Levantou-se com dificuldade e caminhou de um lado para o outro como que perdido, preferia bater com a própria cabeça contra a parede do que continuar a ouvir aquela voz. Estaria ela falando sozinha, delirando, ou pior, tentando enlouquecê-lo? Aproximou-se da janela, poderia atirar-se dali ou, então, atirá-la, não, isso não poderia estar acontecendo, na tentativa de acalmar-se foi para o quarto. Alguns minutos depois, D. Valdete, com o intuito de avisá-lo que a comida estava pronta, foi atrás dele.

- Ué, seu Alfredo, não está bem, resolveu se deitar? Venha almoçar primeiro, mais tarde o senhor descansa, mas também, descansar do que, não fez nada hoje, passou a manhã sentado lendo o jornal.

O homem olhou-a de soslaio, abriu uma gaveta do criado mudo e tirou de lá uma tesoura, a mesma que usava para recortar do jornal os anúncios que achava mais interessantes, levantou-se devagar e caminhou lentamente em direção a ela.

- Não D. Valdete, vou fazer algo que eu já deveria ter feito! – gritou. A mulher, espantada, recuou enquanto ele seguia vagarosamente em sua direção.

- Vou cortar a tua língua, assim não vais conseguir infernizar mais ninguém, não sei como não pensei nisto antes!

Ela esboçou um sorriso de estranheza, afinal o patrão nunca fora dado a este tipo de brincadeira, porém, em poucos segundos, percebeu seu olhar nebuloso, deu mais alguns passos para trás, virou-se e saiu tão rápida quanto a idade lhe permitia. Passaram, então, a correr pelo apartamento tal gato e rato, dois velhos enlouquecidos, desviando de mesas e cadeiras, tropeçando no sofá e nos próprios pés, ela gritando por socorro e ele xingando-lhe.

- Seus dias de faladeira acabarão agora, pare aí que vais ver!

D. Valdete conseguiu abrir a porta e fugir para o corredor, foi amparada pelo porteiro, que subira correndo os dois lances de escada para verificar o que estava acontecendo. O rapaz, ainda sem entender nada, olhou surpreso para Alfredo, que ainda empunhando a tesoura gritou:

- Isto! Segura que vou cortar-lhe a língua.

domingo, 2 de agosto de 2009

A revolta das criaturas

Almiro Zago

"Não há melhor espelho que um velho amigo."
(Santo Agostinho)


Respeito aos mais velhos foi, na minha infância, um preceito forte, repetido na família e na escola. Por mais velhos, reconhecia todos os que tivessem aparência de adulto, não apenas os idosos.

Pois, agora, também sou entrado em anos. Só não tirei carteirinha. Mas as coisas estão diferentes. E como!

Respeitar os idosos vem sendo atitude em crescente migração da regra geral rumo à exceção.

Sempre achei que a deferência especial aos velhos reclamava, em certa medida, semelhante comportamento deles em relação aos mais moços, em homenagem à convivência fraternal entre as gerações. Vejam que "nos olhos do jovem arde a chama, nos do velho brilha a luz", escreveu Victor Hugo.

Desde tempos imemoriais, em todas as culturas, os velhos têm sido considerados sábios, certamente pelas vivências e experiências acumuladas ao longo da vida.

Nos dias que correm, bem observando, encontramos velhos com muito a dizer e a ensinar, mas poucos interessados em ouvi-los. Terá sido sempre assim?

Mais triste é reconhecer que velhos há sem nada de bom a passar para a juventude. É só olhar para o Senado da República. Lá, estão homens da Terceira Idade exercendo mandato de senador. E, desses senhores, o mínimo a esperar seria exemplos de sensatez, dignidade e respeito ao interesse público.

Ao invés disso, o que vemos na TV e nos jornais são imagens de alguns homens em provecta idade, frustrando o povo com sua conduta antiética na busca de vantagem pessoal, familiar e/ou de grupos.

O diabo, dizem, mais sabe por ser velho do que por ser diabo. Aos meus ouvidos, esse ditado soa como homenagem à velhice. Fico sentido, mas está difícil reconhecer o mesmo em relação aos senadores idosos envolvidos em deploráveis episódios.

Suspeito tenham eles envelhecido em cumplicidade com a diabólica "sabedoria". Talvez, isso explique o caso do Presidente do Senado, aquele de “brasileiros e brasileiras” do tempo do Plano Cruzado.

Orgulho, ambição e ganância não o deixaram satisfeito com as honrarias do cargo de Presidente da República e da qualidade de “imortal” da Academia Brasileira de Letras.

Preferiu manter-se na vida pública, perseguindo interesses, finalmente desvelados, comprometedores de sua imagem e do destino de recursos públicos.

Aliás, o Lula andou dizendo que a Polícia Federal considere a biografia dos investigados. No caso do Sarney, ele próprio a esqueceu.

Ainda que não acredite, pode ser que tudo o que venha a ser feito para penalizar o escritor de "Marimbondos de Fogo" acabe em "pizza", do jeito que a mídia gosta de dizer.

Mas acontecendo o pior, por consolo, ainda restaria a esperança de revolta das criaturas - os marimbondos - contra seu criador, dando-lhe, desculpem a maldade, algumas ferroadas num certo ponto estratégico, revelando de vez o efeito Pinóquio.

Depois, em desagravo aos idosos bons senadores, bem que poderia um excitado enxame de marimbondos distribuir picadas em algumas cabeças esbranquiçadas ou tingidas, calvas ou cabeludas de solidários amigos do autor da obra.

Bem... imaginar é de graça.

27.07.09