terça-feira, 20 de abril de 2010

No parque...

Almiro Zago
 
Um

Veio ensolarada, linda, a manhã de sábado.
E há muita gente: uns, como eu, fazem caminhada, outros correm;  alguns praticam exercícios; e há os que simplesmente espairecem, mateando. Mas a mulher de camiseta espalhafatosa  faz diferente: conversa com o homem   de sapatos, calças e camisa de manga longa.

Já é segunda-feira,  cedinho, perto das oito, e a mesma mulher aparece exercitando alongamento junto o meu  percurso. Vou dando minhas voltas e, numa delas, a figura surge acompanhada pelo mesmo sujeito do sábado, vestido como quem vai ao trabalho. Param num extremo do parque, de pé junto a um banco. Falam e falam ao modo de quem  troca  confidências...

Passados uns dois dias,  vejo repetida  a cena. Repetida, outras e outras vezes. Se maiores arroubos afetivos não se vê,   não  disfarçam  o jeito amoroso de uma relação, diria, clandestina, tanto ela, mulher beirando os 50,   quanto ele,  avizinhado  dos   sessenta anos.

Ao certo, nem sei quanto tempo isso durou, porém não mais foram vistos os  discretos amantes matinais. Todavia, ando frustrado por não saber o final da história. Teriam sido descobertos? Romperam a ligação?  Ou não mais precisam escondê-la?

*
Dois

É bom, faz  bem ter um cachorro, ouço dizer, mas há quem tenha dois ou mais. Também gosto desse animal, ainda que  platônica seja minha afeição. Nessa relação entre os amados cães e seus donos, sempre me assalta um porém:  eles nos forçam a compartilhar o lado escatológico da coisa. Podem conferir, nas primeiras horas da manhã,  eles transformam o parque numa "privada pública"  canina.

E como não se  pode  caminhar olhando para o alto,  eu pelo menos não sei, o que se nota, querendo ou não,   é a sucessão de cachorrinhos e cachorrões, guiados e observados por suas donas ou donos, a dar vazão às suas necessidades fisiológicas.

Pois numa certa manhã, aquele sujeito deve ter intuído isso: "se o cão pode, eu também posso". Apressadinho, aproximou-se de uns arbustos e abaixou-se para fazer a mesma coisa. Esclareço, deve ter sido, pois não cuidei de confirmar.

Mais não era do que  um  errante, pacífico e solitário doente mental, sem ninguém a importar-se com ele.

Certamente, muito se poderia escrever sobre o assunto, mas, de minha parte, vai  apenas a pergunta: quem é mesmo que leva vida de cachorro?

*

Três
                                        
Tépida e  iluminada,  passando vai  a  manhã  de domingo. O jogo de luz e  sombra entre o arvoredo e o  gramado e  as folhas pelo chão  compõe  telas que Claude Monet  e todos  os  impressionistas teriam sonhado pintar.

Mas a moça magra nada percebe. Sentada   a um banco,  óculos escuros no rosto imóvel,   olha  fixamente para frente na direção do laguinho.

E outra vez me aproximo  daquele lugar, e a jovem, em posição de estátua,  mostra-se alheia ao ambiente poético à sua volta. Seria a depressão fazendo pose para o retrato?

Mais um pouco, e outra vez  a moça e o banco  no meu repetitivo percurso. Ah..., mas algo mudou. E como! Livre dos  óculos escuros, ela brilha e conversa   com o rapaz que está de pé, à sua frente,  acarinhando a cabeça de seu cachorro grande. 
                                         
Agora, em minha última volta, observo progressos no animado encontro dos jovens ao tênue sol filtrado pela ramagem das plantas.

Ela continua  sentada no mesmo lugar do banco, mas  ele  acomodou-se ao seu lado. O cão, já não conta.

Evocaria a cena pinturas de Renoir,  como aquela da festa no parque de Saint Cloud?                                               

***      


quarta-feira, 7 de abril de 2010

Quando a cerração mete medo

Almiro Zago

Para o semanário TempoTodo, de Caxias do Sul           

Ao fechar o sinal na  Rua  Pinheiro Machado, tocou-me parar o carro lá pelo meio da  fila. Olhando para frente, no rumo norte da Visconde de Pelotas, atraiu-me o vermelho do semáforo a contrastar harmoniosamente com o branco cinzento da cerração em baixa.

Pois aí,  minha memória ligada na função "automático", instantaneamente, transportou-me a uma fria madrugada de um distante, quase esquecido sábado.

E eu me vi, rapazola de 20 anos, a caminhar por aquele mesmo lugar dentro de uma cerração que mais espessa me envolvia à medida que  avançava. Todas as nuvens rasantes sobre Caxias do Sul, parecia, haviam programado encontro bem naquele espaço.

Seria perto da uma hora; além de mim, ninguém mais havia por ali, nem mesmo um daqueles gatos vadios às vezes referidos em  textos literários.

Atravessando a Pinheiro Machado, o vizinho que coabita a minha mente,  sempre do contra, veio, insensível e inoportuno,  trazer-me à lembrança algo  perturbador    para a circunstância: uma cena de filme (Ou teria sido de livro policial?), que se passava em meio ao "fog" de Londres - aquela forte mistura de névoa  e fumaça da queima de carvão para aquecimento. Num ambiente de visibilidade restritíssima,  andava um homem  por uma calçada e  ao chegar à esquina,  foi surpreendido e apunhalado por um assassino, de tocaia.

Esse pensamento não se apagava. Funcionou, entretanto, a intuição preventiva porque, ao dar-me conta,  já caminhava pelo meio da rua. E a rua, que era   solidão e silêncio;  a cerração, que me queira engolir, e  aquela infeliz imagem  do "fog" londrino foram me enchendo de suspense.

Amortecido pelo solado de borracha dos sapatos, nem meu andar se fazia ouvir.

Mas nada,   ninguém  seria visto a mais de uma meia dúzia de  metros, pois os bicos de luz pouco clareavam.

Conhecendo o caminho, ia adiante, o receio, também.

Já em descida, chegou-me  um abafado tóc, tóc. Ah... tenho companhia, preocupei-me.

E o tóc, tóc ficando rápido, mais audível, mais forte.

Claro, eram passadas de um apressado. Talvez quisesse me alcançar.

Se o caso ainda não era de medo,  nem poderia dizer que fosse de temor, apenas.

Porém,  certo estou de não me ter detido a analisar meu estado psicológico.  Atento o juízo, fui apressando os meus passos.

O tóc, tóc, constante, chegando mais perto na densa cerração. Se olhasse para trás, nada enxergaria. Ou veria algum fantasma?

Para meu bem-estar emocional, a certo ponto, percebi o ruído das passadas "perseguidoras" em redução, diminuindo até sumir. Suspeitei que o sujeito tivesse dobrado a esquina. Só  poderia ser isso. Ou  havia caminhado de volta?

Bem, dois breves toques de buzina do veículo que me seguia  trouxeram-me de volta ao presente.

Mesmo que  a isto chamem de saudosismo, imaginem se, ainda hoje, a gente só sentisse medo de assaltos ao andar, à noite, por ruas escuras ou encobertas por cerração ou outros fenômenos do gênero.

Todavia,  de minha parte, já nem sei quantas situações me amedrontam nos dias e  noites que vivemos.                         

***

21.03.2010