quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

O mais belo carro alegórico

(Especial para a edição de 19.02.2010 do Semanário Tempo Todo, de Caxias do Sul)

Almiro Zago                      
                                               
Nestes dias em  que se respira  atmosfera de  Festa da Uva, me assalta a vontade de andar à sombra dos parreirais  de olfato impregnado de  perfume de uvas  tintas.

E isso pode ser enquanto  existirem vinhedos conduzidos em latadas, em vias de extinção  diante do avanço de outras técnicas de condução, como a espaldeira e a Y,  essas que expõem as uvas ao sol ao jeito das mulheres na praia.

Nada mais poético,   nem mesmo um roseiral florido,  e olhem que a rosa é minha flor favorita,  do que um vinhedo vergado pelos cachos de uvas maduras.  Pois é  toda poesia a vida de uma videira e sua morte fingida no dourado das folhas de outono.

A uva e o vinho, desde sempre, têm sido motivos de celebrações, a começar pela vindima, tempo festivo, e, no Rio Grande,  traço de união entre as Colônias Italianas, outrora compartilhados com os trigais,  expulsos, depois, pelas terras  empobrecidas. Mas a despeito de  granizos, crises e geadas, por amorosa teimosia de agricultores e vinhateiros, ficaram as vinhas.

Época houve,  enquanto Caxias do Sul se desenvolvia  com suas fábricas e seu comércio, que seu prestígio no Estado e no País provinha da  Festa da Uva, do seu vinho  e dos produtos Eberle.  

Em boa parte, pela vitrina da Festa da Uva a indústria caxiense mostrou-se ao mercado. Porém, em algumas edições o setor industrial dominou o evento, avançando em sofisticação, reservando um segundo plano ao lado típico e à própria uva. 

Famosa convidada despertou-me  para o fato, em 1972,  quando a transmissão em rede nacional do desfile de carros alegóricos inaugurou a televisão em cores no Brasil. Numa entrevista radiofônica, quis saber da atriz  Tônia Carrero   sua  impressão da Festa da Uva:  "Mas onde estão as uvas? Até agora, vi uma bonita festa industrial..." 

As coisas acabaram mudando e a festejada uva recuperou o seu lugar  e não mais deixou de ser a vedete  dos festejos. E a indústria,  frequentemente, sua aliada.

Gosto de contar que minha mais remota ligação com a  Festa da Uva  vem de 1950, nos 75 anos da Colonização Italiana. Meus pais  estiveram na cidade e de volta para casa, na colônia, falavam com entusiasmo sobre os carros alegóricos.

Eu não entendia bem o que fossem esses carros.

Passados alguns dias, fui à cidade com meu pai. Ainda na periferia,  admirei-me de ver uma fábrica  grande e, à sua frente, uma extensa várzea, por onde adentrava um estranho e belo veículo. Bem diferente daqueles poucos que já vira, parecia um caminhão de carroceria fechada, arredondada na parte de cima, todo pintado de verde, refletindo o sol da manhã.  Ao olhar do guri de sete anos,  aquilo era novidade e  fascínio. Então,  curioso,  ao meu pai perguntei:

- Esse aí é um carro alegórico da Festa da Uva?

- Não, não... é um caminhão do Randazzo  carregado de lixo...

 Randazzo, um cidadão italiano, era o concessionário da coleta do lixo e, ao fundo daquelas terras,  ficava o que atualmente conhecemos como lixão.


                                                       * * *

Da série  Civilidade:

Verão, o que resta para contar

Almiro Zago

Invisível poder declarou obrigatório:  todo e qualquer evento tem de  ser acompanhado por música barulhenta, indiferente aos decibéis.


O mundo contemporâneo tem sido pródigo em  aparatos tecnológicos para tudo, a pretexto de proporcionar conforto e  comodidade, satisfação e lazer à vida das pessoas, segundo endeusa a publicidade.
  
Mas se  o gênio da lâmpada de Aladim atendesse meu desejo,  faria desaparecer, ou melhor, reduzir em pelos menos nove décimos um deles. Refiro-me ao recurso da amplificação sonora,   praga azucrinante da vida de muita gente.

E o diria alto e bom som, se fosse à época em que esse mal passou a ganhar espaço. Aos desavisados,  lembro que o  "Aurélio" refere como  "em voz alta, bem clara, sem temer consequências",  o significado daquele modo de falar.

Mesmo beirando o exagero, serenamente revelo:  nada tanto me perturbou, aborreceu e chateou por tanto tempo do que  o volume muito  alto de aparelhos de som - de ambientes festivos de audiência eclética a festas da vizinhança...
  
Se uma lista fizesse, daria um filme em longa metragem, pois   apareceriam centenas  de ocasiões em que o volume desmedido de animações musicais roubou  a satisfação de conviver com amigos e de  prazerosamente curtir festividades, bailes, encontros de confraternização, jantares et cetera.

Claro, isso a muitos agrada, porém muitos outros resignaram-se  ao deplorável exagero, aderindo ao "agora é assim, a gente vai ter que se acostumar..."

Aqui de minha parte, anotem, jamais me acostumarei, nem mesmo até a improvável comemoração de meus cem anos. Mas, se acontecer,  será acústico o som a animá-la, acreditem. Ah... considerem-se todos convidados.

Invisível poder declarou obrigatório:  todo e qualquer evento tem de  ser acompanhado por música barulhenta, indiferente aos decibéis.

À parte as promoções para público específico - shows de rock, baladas e afins, qualquer festa a que se vá  manda a ditadura do som alto. Falar? Só aos gritos. E quem entende? Perdi a conta das situações  em que fingi captar o que me diziam;  igual,  talvez,  tenha sido o inverso

Quanto desmancha prazer!

Assim como no clima, sempre aparece coisa pior: a barulheira vem sendo potencializada pelo chamado "som automotivo." Até  campeonatos disso  fazem, li no jornal.

E os adoradores do ruído, nas  recentes festas de final de ano, adotaram as praias para os seus funestos rituais, no festival da vulgaridade. Onde eu estava, por exemplo, de noite ou de dia resistir era preciso  à passagem de carros com potentíssimo equipamento sonoro. E  atacados, nem só os ouvidos,  mas também  a sensibilidade, dado o incrível mau gosto     das "músicas" tocadas. 

Volta e meia,  menos agressivos no volume,  apareciam  em veículos  grupos exibicionistas para lá de animados,  tocando e cantando suas "músicas" favoritas, entremeadas de  gracejos pouco simpáticos ao pessoal que andava pela  rua.

Todavia,  um certo caso chamou-me particular atenção.

Ao sol do final da manhã, em minha direção e   mesma calçada, retornavam  do mar um homem e  três mulheres,  gente de 50 e tantos anos.

A ultrapassá-los, em baixa velocidade,  uma camioneta,   dessas muito caras, novíssima, lotada de rapazes na farra. Espichando o pescoço para fora, um deles gritou ao sujeito que acompanhava as senhoras:

- "Ô! vagabundo!

A essa gratuita  grosseria, imaginava do ofendido uma retorsão do tipo:  "Vagabundo é teu pai que não te ensinou educação!"

Bem ao contrário, rápido e com presença de espírito,  foi ele direto ao ego da turma:

 - Onde foi que vocês pegaram emprestada essa camioneta?
                                       
                                         * * *
14.01.2010

Uma notícia bacana:

Pois não é que a preocupação com a Civilidade chegou ao Vestibular?!  Por feliz coincidência, o assunto de minha crônica anterior  foi tema da redação no Vestibular 2010, da  Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 

                                          ****