segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Pois é, fui artilheiro na Campanha da Legalidade

Almiro Zago

Ninguém me perguntou onde eu estava quando aconteceu a Campanha da  Legalidade. Nem vou ficar esperando o que não virá. Por isso, desde logo, vou dando minha resposta  através do texto extraído da pág. 53, do  livro Mínimas Confissões*. É o meu jeito de homenagear o cinquentenário daquele marcante episódio da história política do Rio Grande do Sul.

Os canhões do cais do porto

Foi rápido o descarregamento, e o caminhão afastou-se, deixando para trás dezenas de caixas de madeira com alças de sisal, cheias de munição. Não mais que alguns minutos depois, porque a circunstância pedia urgência, estava tudo pronto.
— Granada explosiva, carregar!

O comando gritado pelo sargento afetou nossos nervos. Éramos sete recrutas, a guarnição completa, operando o canhão antiaéreo. Aí começamos a executar a ordem em raro silêncio. Dessa vez, a granada era de verdade, ao contrário daquela que havíamos manuseado durante o treinamento intensivo. Assim que foi retirada de uma das caixas empilhadas a poucos metros e passada de mão em mão, a pesada bala foi municiar o canhão 40 milímetros. A arma, assim como outras da mesma unidade militar, fazia parte do esquema de defesa contra eventuais ataques aéreos ao palácio do governo estadual.

Éramos não mais do que aprendizes de artilheiros. Pudemos, finalmente, executar a sequência de operações que seriam necessárias para disparar o projétil, em defesa, na hipótese de uma agressão real. Embora fosse obsoleta a peça de artilharia frente os aviões a jato, os presumíveis atacantes, todos sabíamos que, mesmo assim, ela poderia causar danos. Ferir e matar, no caso, outros brasileiros. Ou, por causa dela, nós é que poderíamos ser feridos ou mortos.

Fazíamos parte da força militar que havia chegado a Porto Alegre ao amanhecer, procedente do Quartel do 3º Grupo de Canhões Automáticos Antiaéreos. A cidade de Caxias do Sul apagara as luzes na noite anterior para a passagem em segurança do comboio. Isso não impediu, entretanto, que uma multidão, em despedida, acompanhasse o começo do deslocamento pela Avenida Rio Branco.

Porém, naquela hora, no outro lado dos muros do porto, a capital fervilhava com os desdobramentos da Campanha da Legalidade, que tinha o propósito de garantir a posse do Vice-Presidente da República por causa da renúncia do Presidente. Despontando do topo dos edifícios mais altos, os canos de metralhadoras bem confirmavam o clima de guerra.

Francamente perceptível, acirrava-se o antagonismo entre as forças dos ministros militares, que se opunham ao cumprimento da Constituição no tocante à sucessão presidencial, e a resistência do Sul. Isso justificava o temor de incursões aéreas contra o Palácio Piratini e os demais pontos de defesa. Significativamente, a vizinha Base Aérea de Canoas não havia aderido ao movimento liderado pelo governador Leonel Brizola, que, a partir de certo momento, passou a ter o apoio do III Exército.

Embora jovens soldados, tínhamos consciência de toda aquela realidade e do seu significado. Tanto assim que guardávamos na lembrança as palavras do comandante da bateria, dias antes, ainda no quartel, ao ordenar a entrega de armas individuais com munição: “Lembrem-se de que essas armas poderão ser usadas contra irmãos nossos. Não permita Deus que isso venha a acontecer.”

E como não esquecer o tom dramático do capelão, o Padre Giordani, de São Pelegrino, ao abençoar a tropa antes do embarque para lugar ainda não revelado. Disse-nos que, naquele mesmo lugar, em 1944, havia ele dado a bênção de despedida aos pracinhas da cidade que foram lutar com a Força Expedicionária Brasileira na Itália. Para incutir con­fiança, deu ênfase a que todos haviam voltado com vida, e certamente Deus permitiria que o mesmo acontecesse com todos nós que estávamos em vias de partir.

Isso tudo se resumia a uma recordação, pois ao sol do final da manhã do primeiro sábado de setembro de 1961, o cais do porto impressionava pelo cenário de guerra. No lugar de navios, cargas e estivadores, soldados e diversos canhões apontando para o norte, refletidos nas águas calmas do Guaíba. Outros tantos quebravam a paisagem do Parque da Redenção e, dias depois, também da Praia de Belas. Logo adiante, num dos extremos, como que a fazer um contraponto, alçava-se imponente a chaminé da Usina do Gasômetro.

Nós, os soldados recrutas, representávamos, como em forças do gênero, o contingente humano mais numeroso. Apenas concluído o período de adaptação ao Exército, tínhamos não mais de quarenta dias de caserna ao estourar o movimento. A esse tempo, a instrução normal para a formação de artilheiros sequer havia começado. Por isso tudo, carregar o canhão com munição real e num lugar onde poderia vir a ser empregado era a culminância de uma intensa e curta preparação para um quadro de tensão nunca antes vivido. No íntimo, cada um de nós acalentava a esperança de não precisar fazer nenhum disparo com a arma, cujo ruído somente os nossos superiores conheciam.

Pesados, sucederam-se os dias. E os aviões a jato não apareceram. Só uma intrusa e solitária aeronave de transporte surgiu uma vez, à grande altitude, voando em círculo em pleno meio-dia. Fazia guerra psicológica por meio de lançamento de impressos, contendo ordem de baixa aos recrutas incorporados ao Exército naquele ano. Ou seja, o Ministro da Guerra nos estava mandando para casa. A rigor, tendo na mão um daqueles papéis com a assinatura do ministro, poderíamos ir embora. Mas ninguém levou aquilo a sério.

Foi nesse contexto que a emenda constitucional, produto de um arranjo político conciliador e que introduzia o sistema parlamentarista de governo, terminou por apagar os rastilhos do conflito, prenunciando novo clima. De resto, o minuano encarregou-se de dissipar as nuvens de hostilidade, devolvendo o límpido azul aos céus rio-grandenses.

E, assim, nenhum canhão disparou no cais do porto ou em qualquer outro lugar do País, naquele curto e dramático período.

Por isso, o rugir dos tiros de granadas explosivas, nós, os novos artilheiros, iríamos conhecer só dali a alguns meses, num rotineiro exercício, tendo como alvo uma rochosa e inofensiva coxilha de Vila Seca, na borda dos Campos de Cima da Serra.

*Editora Suliani Letra&Vida