sexta-feira, 17 de agosto de 2012

A neve da memória


Almiro Zago

Antes mesmo de conhecer a neve, habitavam seus gélidos flocos o meu imaginário, das tantas vezes que ouvira contar sobre o drama dos antepassados italianos sitiados pela neve durante o inverno, com escassos meios de aquecimento.

Poetas e cantores celebram essa encantada partícula de gelo, mas “A Balada da Neve”*, de Augusto Gil, foi a primeira a emocionar-me com o lado poético desse lindo fenômeno da natureza. Sim, beleza e poesia, quando se tem abrigo contra o frio.

Nestas paragens de pouco nevar, e ainda assim em restritas regiões, certamente essa raridade justifica tanto fascínio pelos translúcidos e esvoaçantes flocos. E quando aparecem, por minutos ou horas, rendem festivas reportagens e manchetes em toda a mídia, além de levar entusiasmados turistas aos lugares altos das serras do Rio Grande e Santa Catarina.

Dizem meus registros caxienses que aos nove anos, pela primeira vez, senti no rosto a gelada carícia de uma nevada. Foi de manhã, a caminho da escola, todo faceiro sob o guarda-chuva, digo, guarda-neve. Porém, nada gostei do que a professora fez comigo. Só porque estava nevando, mandou-me para casa.

Inúmeras vezes iria admirar paisagens nevadas no cinema, nos cinejornais europeus, como o “Atualidades Francesas”, que frequentemente exibia competições de esqui na brancura invernal dos Alpes.

Até ali, fora nossa vedete só motivo de alegria e deslumbramento.

Mas um filme houve sobre Franz Schubert (1797- 1828), marcado intensamente pela tristeza que infundia no espectador, exatamente na cena do cortejo fúnebre para o enterro do grande clássico austríaco. Em meio de forte nevasca, iam     os acompanhantes, castigados por um frio polar, revelando nos roxos rostos expressões de profunda dor e angústia pela precoce perda.  

Pois aquela imagem de consternação reapareceria na memória, anos mais tarde, na vida real, numa gélida manhã com os pingos de chuva rendendo-se aos abundantes flocos de neve. E meu fusca bege avançava pela estrada de Caxias a Flores da Cunha, tendo como destino o sepultamento de uma pessoa muito querida. Continuamente varrida pelo limpador do para-brisa, a neve e sua sensação de frio mais entristecia o coração.

Estrada do Morro da Igreja - Urubici-SC

Um irrepetível panorama

Vivenciei, senão muitas, um bom número de ocorrências da neve sul brasileira, sempre chegando de surpresa, como no dia em que comprei uma grossa japona, numa manhã de inverno de ar primaveril. Deixei-a na loja para apanhá-la quando chegasse o frio. À tardinha, porém, a roupa já me protegia da frialdade que chegara nevando. Também sem aviso, nevou na tarde de um sábado, justo motivo para faltar à festa do Dia dos Pais na escola das crianças.

Ah, mas a nevada das nevadas, a mais intensa e linda, semelhante àquelas dos postais e dos filmes, aconteceu em 1965, lá por 20 de agosto. Acomodado num ônibus, pelas cinco da tarde, ia observando esparsos flocos perdidos no ar. Ao anoitecer, copiosa já era a precipitação, cobrindo telhados, ruas e calçadas, tudo. 

Mas a madrugadinha do dia seguinte reservaria espetáculo encantador. À luz de velas, porque faltara energia, preparei-me para ir para o meu trabalho de locutor na Rádio Princesa, onde deveria estar às seis horas.  

Ao abrir a porta para sair, vivi a sensação de avistar uma cidade de cartão de Natal, toda branca. Mas era Caxias do Sul, como se um imenso e alvo lençol sobre ela tivesse sido estendido, abrindo um quadro de raríssima e inesquecível beleza.  

Ainda inebriado, dando os primeiros passos lá fora, afundei na neve fofa, pois chuviscara, resultando sapatos encharcados, naquela friagem...

Não obstante o tempo, continuo achando bonita e poética a neve. Sigo amando as brancas paisagens, mas se estiver por perto, prefiro o lado de dentro das janelas, ou vê-las nas telas da televisão e dos cinemas.

11.08.20012   
     
* Balada de Neve

Batem leve, levemente,
como quem chama por mim.
Será chuva? Será gente?
Gente não é, certamente
e a chuva não bate assim.

É talvez a ventania:
mas há pouco, há poucochinho,
nem uma agulha bulia
na quieta melancolia
dos pinheiros do caminho…

Quem bate, assim, levemente,
com tão estranha leveza,
que mal se ouve, mal se sente?
Não é chuva, nem é gente,
nem é vento com certeza.

Fui ver. A neve caía
do azul cinzento do céu,
branca e leve, branca e fria…
Há quanto tempo a não via!
E que saudades, Deus meu!

Olho-a através da vidraça.
Pôs tudo da cor do linho.
Passa gente e, quando passa,
os passos imprime e traça
na brancura do caminho…

Fico olhando esses sinais
da pobre gente que avança,
e noto, por entre os mais,
os traços miniaturais
duns pezitos de criança…

E descalcinhos, doridos…
a neve deixa inda vê-los,
primeiro, bem definidos,
depois, em sulcos compridos,
porque não podia erguê-los!…

Que quem já é pecador
sofra tormentos, enfim!
Mas as crianças, Senhor,
porque lhes dais tanta dor?!…
Porque padecem assim?!…

E uma infinita tristeza,
uma funda turbação
entra em mim, fica em mim presa.
Cai neve na Natureza
e cai no meu coração.

Augusto Gil (l873-1929 - Portugal), em Luar de Janeiro