segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Assim falaram meus netinhos

Cena 1:

      Parque Infantil, verão, em Capão da Canoa:
    Mariana, entre seus 4 para 5 anos, concorda em ir para casa, deixando o balanço, mas firma condição:
     — Só se você me leva, vovô, eu to muito cansada.
     E então, carreguei no colo a doce netinha por alguns minutos.
     — Tu caminhas um pouco, agora, né Marianinha, o vovô tá cansado.
     — Ah, não, eu to cansada... 
     — Marianinha,  eu  não sou forte como o teu papai,  sou um velhinho...
     E a menininha, já no chão, pronta para andar:
     — Então se você está velhinho, você vai morrer?
     — Não vou morrer, não.
     — Mas se morrer?
     — Ah, eu vou ficar triste, mas vai demorar pra isso acontecer.
   Meses depois, em sua casa em São Paulo, Mariana esforça-se para abrir um potinho de iogurte, mas as pontinhas da tampa se rompem, e ela procura abrir com os dentes:
     — Deixa o vovô  ajudar, querida.
     — Ah, isso é muito complicado pra um velhinho...                                     

Cena 2:

Preparando fogo

     Porque o frio de um anoitecer de julho aconselhava,  o netinho Alex, 7 anos, com  interesse e entusiasmo me ajudava na preparação das achas de lenha para fazer fogo.  Nessa ocupação, conversávamos acerca dos cuidados que o menino deveria observar  para não bater a cabeça nas bordas da lareira. Poderia machucar-se e sentir dor.
     — E até pode morrer alertou o Alex.
     E, em seguida,  fazendo um ar sério:
     — Quando você morrer, vovô, em vou no seu túmulo com uma flor na mão e vou dizer: coitado…
     — Mas se eu estiver em  cinzas numa urna, o que você vai fazer?
     — Então eu faço um foguinho no lado.

sábado, 19 de novembro de 2016

Cabeça Branca mai più?

Para a ex-futura 2ª edição revisada e ampliada de Mínimas Confissões.
Aos amigos:
Edgar Ferretti por declarar no facebook: “tiro o chapéu pros caras que assumem seu grisalho”; e
Cláudio Abreu – um desses “caras” de invejável  cabeleira nevada.

Almiro Zago

Ah, como gostaria de ter os cabelos brancos para com eles bem viver.

Meus nem tantos fios alvos, a timidez quase os esconde. Porém, deixam-me sensação de abandono os muitos cabelos em fuga que temem não sei o quê, quais fugitivos da guerra do Iraque, ou famintos retirantes africanos.

Resignado, ao curso dos anos tenho acompanhado as revelações do espelho desde as primeiras levas de capilares emigrantes a formatar a tonsura de Santo Antônio. Já os mais recentes fugitivos partem em voo baixo e na pele, brevemente ex-couro cabeludo, fazem autocapina, abrindo espaço tipo floresta de eucaliptos: cobertura ao alto e solo de vegetação ausente.

Pediu desculpas o sonho da cabeleira branca, pois a figura típica de avô grisalho em meu semblante ninguém verá.

Conforta-me a certeza de que meus netos seguirão com seu amor e afeto pelo nonno, indiferentes à carência ou à cor da cobertura capilar.


13/11/2016

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

O sol pintou lá em casa

Almiro Zago


Enfastiado de tantas artes em minha pele, o sol, em sábado olímpico, veio fazer arte, porém bela arte, aqui em casa.

Descendo a curva do poente, brilhou o sol na borda de espelho perto da janela. E o espelho fez refletir os raios de luz na parede adiante, como se em mescla de cores pintasse pequeno quadro de rara beleza. 

Já a sombra do vaso de flores finalizou a obra, e um instantâneo registrou a singular e espontânea expressão do belo. Todavia, dizem meus olhos, a imagem fotografada ficou pontos abaixo da natural. Ah, se a foto parece tremida é por causa da emoção do fotógrafo...


Certa rosa vermelha e as flores de Ronsard e Manuel Bandeira

Almiro Zago

“Foi para vós que ontem colhi, senhora,
Este ramo de floras que ora envio.

Não no houvesse colhido e o vento e o frio
Tê-las-iam crestado antes da aurora.”


Licença, caros poetas, mas a personagem do soneto carecia, em seu jardim,  de flores para colher como essa em exposição. Sem crestar, resistiu a rosinha vermelha  aos ventos, ao frio  das noites de Caxias do Sul, na última semana do inverno, a rigor vestida para receber a primavera.  Fria era  a manhã de 22 de setembro, quando um clic para fotografia simbolicamente a colheu na frágil roseira junto à  casa de minha família, onde vivi  até casar. Ah, isso  foi no século passado, e faltam dois anos para somar cinco décadas...

Paráfrase do Soneto de Ronsard, de Manuel Bandeira

“Foi para vós que ontem colhi, senhora,
 Este ramo de flores que ora envio.
Não no houvesse colhido e o vento e o frio
Tê-las-iam crestado antes da aurora.

Meditai nesse exemplo, que se agora
Não sei mais do que o vosso outro macio
Rosto nem boca de melhor feitio,
A tudo a idade afeia sem demora.

Senhora, o tempo foge... o tempo foge...
Com pouco morreremos e amanhã
Já não seremos o que somos hoje...

Por que é que o vosso coração hesita?
O tempo foge... A vida é tão breve e é vã...
Por isso, amai-me... enquanto sois bonita.”

***

25/09/2016


sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Faz bem ler a bula

Almiro Zago

Bateu vontade de escrever alguma coisa e saí a pescar assuntos. Na mídia, falavam de corrupção, assaltos, matanças aqui perto e no Oriente Médio, diziam de terremoto na Itália, do impeachment de Dilma Rousseff. Nalgum canto por aí, dormitaria a motivação para ir ao tema clima político, aliás, campo onde muitos vivem encerrados nos fortins de suas ideias e posições impermeáveis, mandando ao exílio palavras como ponderação, diálogo, tolerância e seus significados.

O olhar na caixinha de remédio à minha frente, qual bip programado, lembrou-me de algo a fazer: cuidar de certos sinais emitidos pelas minhas pernas, afinal por elas sou carregado, narrando pequenas vicissitudes pessoais. Ao menos, salvo ao autor, este texto nada além de chateação levaria aos leitores.

E, num átimo, emergiu da memória algo que se passara comigo há algum tempo, um exame visual e crítico do estado de finura dos membros inferiores, pelas calças disfarçados. Sem aviso, tocou-me a autocomiseração, mas cessou ao faiscar na mente fugidio consolo: guardavam semelhança, pelos à parte, com as pernas das modelos. É, sim, em comum, elas e eu exibíamos par de caniços andantes, a revelar, no meu caso, indesejável magrez, palavra apropriada, acreditem.

Vai bem dizer que a esse estado físico, nem mesmo em momentos depressivos buscado, cheguei em alguns meses, ao largo de regimes programados ou dietas indicadas. Mas sinta, você que chegou até aqui, andei me alimentando de tudo o que de saudável apetecia. Entretanto, deixei de prestar atenção ao essencial: daquele tudo, comia muito pouco.

Deu nisso a convivência com certo mal sem diagnóstico, daqueles que a ninguém leva direto à tumba ou à urna de cinzas. Não bastassem desagradáveis manifestações, como greve intestina, passou a afetar o paladar, reduzindo vontade e prazer de comer.

Exigiu minha rendição a realidade, pois alguém que, segundo vozes familiares, já era magro, perdera  quatro quilos e meio. Por sua vez, o médico, depois de exames disso e daquilo, deixando de lado receituário, ordenou: trata de comer! Está bem, mas o apetite não ouve ordens, nem se comove com sorrisos

Ainda bem que a “repórter” não me viu nessa fase. Refiro-me a certa senhora que se considera amiga da gente, porém pessoa chata, insistentemente perguntinha. Numa das últimas vezes que a vi, não tendo a sorte me ajudado a desviar caminho, fui por ela submetido a um extenso questionário. Começou perguntando pela Irene, depois pelo filho, interessou-se por minha filha e os filhos dela, os meus netos. A cada resposta, brotavam pretextos para outras indagações. Tudo deveria ficar bem esclarecido.

Entretanto, “memorável” foi o fecho da entrevista:

— E tu, como vais?

— Comigo, tudo bem.

— É, agora sim, mas uns tempos atrás tu andavas decaído.

Por certo, ter-me-ia* achado “mais decaído” e chamaria o Samu.

Pois nesse indigesto processo, senti belo consolo ao notar a economia do dinheiro aplicado em vinhos. Porque as papilas gustativas só me passavam acidez, o degustar do néctar dos deuses conheceu o esquecimento. Vi evaporar-se uma das alegrias da vida.

Em clima de falsa anorexia, aborrecido era o sentar à mesa, sentindo o apetite descer ao nível dos sonhos daquelas mulheres que tanto sofrem para perder peso.

Resguardando minha imagem, asseguro não ter incorporado o hipocondríaco, já o complexo de vítima nem cafezinho tomou comigo.

Mas aí veio o sábado de Páscoa. Paramos para almoçar num restaurante de beira de estrada e para chegar à portaria, caminhei, tendo à minha frente um sujeito idoso, alto e magérrimo. Às suas costas, imaginário cartaz reproduzia conhecida frase “Eu sou você, amanhã.”.

Soube, em momentos, o significado de impressionado, dolorido e triste por dentro. Súbito, então, em pensamento repetia: não, não quero ficar desse jeito.

Passada uma hora, talvez, surpreendi-me durante o almoço por quase desconhecida sensação e sem notar escapuliu-me a frase: como é bom comer quando se tem fome!

Fora o primeiro passo para recuperação que só viria após deixar de tomar, com a devida cautela, determinado medicamento.

Aconteceu-me ter ingressado no pequeno percentual de pessoas que sofrem determinado efeito colateral de remédio descrito em extensa e tenebrosa bula.

E assim a melhora foi chegando de mãos dadas com o alívio pelo perecimento do temor de encontrar certa “repórter” por aí.
                
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* Qualquer semelhança com usos de certa figura não terá sido mera coincidência.
28.08.2016