Senhor, senhor...
Almiro Zago
Na praia, a gente vai ao supermercado quando precisa, ainda que seja ao final de uma tarde de fevereiro, quente como a sala de espera do inferno. Ar condicionado, talvez até houvesse, mas não soprava em direção favorável.
Cestinho na mão direita, com uns poucos itens de compras, entrei na fila menos longa. Claro, fiquei no último lugar. Na frente, umas sete ou oito pessoas de ambos os sexos - se é que ainda se pode usar a expressão - e de diversas idades, não conferidas, esclareço.
Se esperar era preciso, procurei conformação no pensamento singrando o mar de Canasvieiras, ali vizinho, amenizando a suada realidade ambiente. Pois nesse etéreo estado, aos meus ouvidos chegou o que parecia ser uma pregadora fanática: "Senhor, senhor..."
Certo burburinho na fila religou-me à realidade. De novo, lá na frente, a voz de mulher: "Senhor, senhor..."
E todos à volta na ânsia de que aparecesse a incógnita figura. Ninguém se acusava.
Notei, então, as pessoas da fileira, de diante para trás, à procura do "senhor"; um a um, os olhares foram fixando-se... na minha cara.
Incansável, a moça ainda chamava: "Senhor, senhor..."
Por um vigésimo de instante, acreditei que o autor de "Mínimas Confissões" tivesse sido identificado e ela quisesse um autógrafo.
Ao contrário, cívico era seu propósito: fazer valer a "caixa de atendimento prioritário". Se deficientes físicos não havia, nem grávidas, nem mães com crianças de colo, bem visíveis apareciam meus 67 anos, um mês e alguns dias.
Embora não vivamos aos beijinhos e afagos, tenho andado de bem com minha realidade corpórea, mas a vaidade atrás da orelha percebeu que ninguém teve a mínima dúvida de que o idoso fosse eu. Também não se ouviu coisas do tipo "nem parece; não aparenta a idade que tem."
Apenas o amável argentino, que me precedia, apresentou-me a todos:
- É o tio aqui.
- Não, não, é "nonno" mesmo, respondi-lhe. (Queria dizer "abuelo")
E a moça sorridente, agora olhando-me nos olhos:
Senhor, passe aqui pra frente...
Vi a fila encolher-se em meia-lua, e na mira de curiosos olhares vivi meus 5 segundos de fama rumo ao balcãozinho da caixa.
Ao final, senti-me encantado, pois raras vezes na minha vida alguém tanto empenhou-se para garantir-me um direito como essa funcionária do supermercado.*
Agora, se os meus leitores desejarem deliciar-se com magistral crônica com tema semelhante, recomendo "Um idoso na fila do Detran", de Zuenir Ventura. Eu a li "Nas cem melhores crônicas brasileiras", antologia organizada por Joaquim Ferreira dos Santos, Objetiva, pág. 265.
Fica combinado: nada de comparações.
* * * * *
*Supermercado Imperatriz, de Canasvieiras, Florianópolis
Um comentário:
Que belo texto, bela crônica prezado Almiro Zago! E, realmente, verdadeira lição de consciência cívica a atitude da funcionária do supermecado. Atitudes raras, hoje, em dia...infelizmente. Eu e o Manoel Canto apreciamos muito o seu livro "Confissões". Parabéns! Uma boa semana para ti e toda tua família! :)
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