Almiro
Zago
Antes mesmo de conhecer a neve, habitavam seus gélidos flocos o meu
imaginário, das tantas vezes que ouvira contar sobre o drama dos antepassados
italianos sitiados pela neve durante o inverno, com escassos meios de
aquecimento.
Poetas e cantores celebram essa encantada partícula de gelo, mas
“A Balada da Neve”*, de Augusto Gil, foi a primeira a emocionar-me com o lado
poético desse lindo fenômeno da natureza. Sim, beleza e poesia, quando se tem
abrigo contra o frio.
Nestas paragens de pouco nevar, e ainda assim em restritas
regiões, certamente essa raridade justifica tanto fascínio pelos translúcidos e
esvoaçantes flocos. E quando aparecem, por minutos ou horas, rendem festivas
reportagens e manchetes em toda a mídia, além de levar entusiasmados turistas
aos lugares altos das serras do Rio Grande e Santa Catarina.
Dizem meus registros caxienses que aos nove anos, pela primeira
vez, senti no rosto a gelada carícia de uma nevada. Foi de manhã, a caminho da
escola, todo faceiro sob o guarda-chuva, digo, guarda-neve. Porém, nada
gostei do que a professora fez comigo. Só porque estava nevando, mandou-me para
casa.
Inúmeras vezes iria admirar paisagens nevadas no cinema, nos
cinejornais europeus, como o “Atualidades Francesas”, que frequentemente exibia
competições de esqui na brancura invernal dos Alpes.
Até ali, fora nossa vedete só motivo de alegria e deslumbramento.
Mas um filme houve sobre Franz Schubert (1797- 1828), marcado intensamente
pela tristeza que infundia no espectador, exatamente na cena do cortejo fúnebre
para o enterro do grande clássico austríaco. Em meio de forte nevasca, iam os acompanhantes, castigados por um frio
polar, revelando nos roxos rostos expressões de profunda dor e angústia pela
precoce perda.
Pois aquela imagem de consternação reapareceria na memória, anos
mais tarde, na vida real, numa gélida manhã com os pingos de chuva rendendo-se aos
abundantes flocos de neve. E meu fusca bege avançava pela estrada de Caxias a
Flores da Cunha, tendo como destino o sepultamento de uma pessoa muito querida.
Continuamente varrida pelo limpador do para-brisa, a neve e sua sensação de
frio mais entristecia o coração.
Estrada do Morro da Igreja - Urubici-SC
Um
irrepetível panorama
Vivenciei, senão muitas, um bom número de ocorrências da neve sul
brasileira, sempre chegando de surpresa, como no dia em que comprei uma grossa
japona, numa manhã de inverno de ar primaveril. Deixei-a na loja para apanhá-la
quando chegasse o frio. À tardinha, porém, a roupa já me protegia da frialdade
que chegara nevando. Também sem aviso, nevou na tarde de um sábado, justo
motivo para faltar à festa do Dia dos Pais na escola das crianças.
Ah, mas a nevada das nevadas, a mais intensa e linda, semelhante àquelas
dos postais e dos filmes, aconteceu em 1965, lá por 20 de agosto. Acomodado num
ônibus, pelas cinco da tarde, ia observando esparsos flocos perdidos no ar. Ao
anoitecer, copiosa já era a precipitação, cobrindo telhados, ruas e calçadas, tudo.
Mas a madrugadinha do dia seguinte reservaria espetáculo
encantador. À luz de velas, porque faltara energia, preparei-me para ir para o
meu trabalho de locutor na Rádio Princesa, onde deveria estar às seis
horas.
Ao abrir a porta para sair, vivi a sensação de avistar uma cidade de
cartão de Natal, toda branca. Mas era Caxias do Sul, como se um imenso e alvo
lençol sobre ela tivesse sido estendido, abrindo um quadro de raríssima e
inesquecível beleza.
Ainda inebriado, dando os primeiros passos lá fora, afundei na
neve fofa, pois chuviscara, resultando sapatos encharcados, naquela friagem...
Não obstante o tempo, continuo achando bonita e poética a neve.
Sigo amando as brancas paisagens, mas se estiver por perto, prefiro o lado de
dentro das janelas, ou vê-las nas telas da televisão e dos cinemas.
11.08.20012
* Balada de Neve
Batem leve, levemente,
como quem chama por mim.
Será chuva? Será gente?
Gente não é, certamente
e a chuva não bate assim.
É talvez a ventania:
mas há pouco, há poucochinho,
nem uma agulha bulia
na quieta melancolia
dos pinheiros do caminho…
Quem bate, assim, levemente,
com tão estranha leveza,
que mal se ouve, mal se sente?
Não é chuva, nem é gente,
nem é vento com certeza.
Fui ver. A neve caía
do azul cinzento do céu,
branca e leve, branca e fria…
Há quanto tempo a não via!
E que saudades, Deus meu!
Olho-a através da vidraça.
Pôs tudo da cor do linho.
Passa gente e, quando passa,
os passos imprime e traça
na brancura do caminho…
Fico olhando esses sinais
da pobre gente que avança,
e noto, por entre os mais,
os traços miniaturais
duns pezitos de criança…
E descalcinhos, doridos…
a neve deixa inda vê-los,
primeiro, bem definidos,
depois, em sulcos compridos,
porque não podia erguê-los!…
Que quem já é pecador
sofra tormentos, enfim!
Mas as crianças, Senhor,
porque lhes dais tanta dor?!…
Porque padecem assim?!…
E uma infinita tristeza,
uma funda turbação
entra em mim, fica em mim presa.
Cai neve na Natureza
e cai no meu coração.
Augusto Gil (l873-1929 - Portugal), em Luar de Janeiro
2 comentários:
Como pode ser tão expressiva (e tão linda!)
a língua portuguesa, na certa sim,
descendente do latim?
Pois prometo que um dia aprendo
e através dela me entendo,
de uma beleza que não finda,
e me repercute ainda,
lá bem dentro de mim!!!
Quero ser algo e em sendo,
deixar de ser um monstrengo,
e mostrar porque aqui vim.
E mesmo sem a neve na memória,
fazer uma noa história,
e que os amigos se orgulhem de mim!
Com o abraço do
Walter Galvani
Quero fazer parte dos "mecânicos da palavra"!
4 de agosto de 2019, (às 10 da manhã)
WGalvani
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