Almiro Zago
Quem no
Google pesquisar “obras de arte feitas por doentes mentais” ver-se-á diante
de centenas de pinturas, colagens ou
desenhos criados por pessoas que sofriam
de alguma das doenças da mente. Impressionante é o caso de Arthur Bispo do Rosário, que por mais de
50 anos viveu recluso num hospício do Rio de Janeiro, e seus trabalhos
mereceram reconhecimento dos círculos culturais do país. Já falecido, o artista
plástico levou a vida acometido de esquizofrenia
paranoide.
Mas, na Internet, ninguém encontrará, e eu tampouco sei qual
seja, o diagnóstico da pessoa que minha
atenção prendeu durante caminhada no parque,
numa das primeiras manhãs de abril. Privilegiada testemunha de sua performance, pude ver que
seu talento não passava pelas artes plásticas, pois surgiu em plena
representação teatral.
À
vista de toda gente que olhos para ele tivesse, sentado a um banco estava o sujeito,
tendo esparramado ao seu lado e sobre as pernas um saco de plástico com seus
pertences materiais e sua invisível
carga de solidão.
Ao
modo de bom aluno de reposicionamento postural
e expressão serena, olhava fixamente
para o objeto, que parecia um livro, segurado
com ambas as mãos descansadas sobre as tralhas. Assim, deixava-se ver absorto,
embevecido numa leitura quem sabe de atraente história e enredo empolgante.
Deixei
de ver de perto para não quebrar o encanto, mas poderia dar-se que lendo não
estivesse. Porém, a aparência de quem já não paga passagem de ônibus ajudava a tornar verossímil a figura de
atentíssimo leitor.
Gravada
na mente essa imagem, segui mais leve em
meu caminhar, sequer imaginando que aquela não fora apresentação isolada.
Deu-se
que na manhã seguinte, antes das nove,
em outra ambientação, mas no mesmo parque, o anônimo ator surpreendeu com algo
tipo 2º ato de peça teatral de título ignorado, também de cena única, mas seguramente
de sua autoria.
Aparecia
ajeitado num banco perto do arvoredo, entre o indefectível sacolão de sua
mudancinha e um pequeno triciclo de
plástico rosa e verde, com rodas azuis, e,
batendo um pedacinho de pau numa
latinha vazia, se esforçava
para marcar o ritmo de samba. Faceiro e sorridente, ia cantarolando alguma coisa para sua plateia imaginária, ao
jeito de velho sambista, com o grisalho dos cabelos curtos encimando sua
negritude.
Espectador
passante, me senti sorrindo, sem nada suspeitar sobre o que estaria à minha
espera na manhã do terceiro dia.
Vinha o sol vencendo seu litígio com as nuvens, oito horas passadas, quando o inesperado tomou os contornos da cena
do ato final da já conhecida peça: o homem alto e magro, em roupas simples, surgiu
a passos lentos no espaço da segunda encenação. Sob um braço, carregava aquele
triciclo de plástico rosa e verde, e com a mão livre fazia girar delicadamente
a rodinha dianteira do brinquedo, sussurrando palavras quase inaudíveis. Na
figura de adulto, tudo nele revelava sensibilidade e encanto de criança. Talvez
criança se sentisse. Ou, quiçá, esse papel quisesse desempenhar.
Ganhei
do acaso a chance de apreciar, de ser
tocado pela paz e a suave alegria dos três atos de espontânea peça. Ou, por
outra, belos quadros emoldurados de
poesia do criativo ator desconhecido,
refúgio do doente mental.
Tenho
andado pelos mesmos lugares; dele, porém, não mais do que a lembrança.
Penso
que a doença o tenha levado a
representações por outros recantos da indiferente cidade, pois, como disse Arthur Bispo do Rosário, “os doentes mentais são como beija-flores:
nunca pousam, ficam a dois metros do chão.”