terça-feira, 3 de dezembro de 2013

A tipuana da memória*

Almiro Zago

Vezes sem conta passeei à sombra de tipuanas frondosas indiferente à identidade dessas belas árvores que me guardavam do calor do sol. Se não me viesse algum interesse, jamais saberia que essa espécie de vegetal e minha história de vida andam enrodilhadas pelas raízes.

Tocado por gratuita curiosidade, passei a olhar folhagens e galhadas das alterosas plantas pelas ruas e parques, sem imaginar a surpresa que viria.

Pois a observação me levou a perceber que o tom verde-claro das folhas penadas e o tronco cinza-escuro de casca grossa e rachada há muito estavam inscritos em minha memória.

Por volta de 2006, bem me lembro, dispensada apresentação formal, soube-lhes o nome e pude concluir que fora à sombra de uma jovem tipuana a gravação na mente da imagem número um de minha vida. Significa dizer que é ela a mais remota de minhas lembranças, na faixa dos meus três anos.

Dirão que a criança fantasia, mas, acreditem, este não foi o caso, pois a árvore existiu e fez parte do ambiente ao redor de minha casa de colônia em Caxias, naquela época. 

Mas o fascinante, vejam só, é que passados tantos anos encontrei-me a viver em Porto Alegre na amistosa vizinhança de dezenas de tipuanas, simbólica ligação entre a tenra idade e esta apressada terceira...

Ao se cruzarem setembro e outubro, as tipuanas, acolhedor abrigo da passarada, aparecem revividas, e os altos ramos entrelaçados sugerem que ali, como na Penúmbria, poderia ser o espaço de Chuvasco de Rondò, personagem de O barão nas árvores, de Italo Calvino.

Dizem os botânicos que as tipuanas vieram do norte da Argentina e Bolívia, e entre nós são amadas pelo sombreamento e encanto paisagístico. Mas ao contrário do que se vê com jacarandás, ipês e paineiras, sua floração é notada apenas pelos tapetes amarelos que os milhões de pequenas pétalas caídas nas madrugadas tecem pelos passeios.

Por aqui, na Feira do Livro, só falam dos jacarandás floridos da Praça da Alfândega, mas ninguém se lembra da florada das tipuanas espalhadas pela cidade.

Ah, mas quem puder apreciar de cima, qual jardim suspenso, as copas onduladas de verdadeiro bosque, com o amarelo das flores e a verdura das folhas a partilhar a luz do sol, sentirá alegria e prazer estético comparáveis a quem aprecia os Jardins de Monet, em Giverny.

Se o vento enciumado desgrenha as melenas do arvoredo, a profusão de pequenas flores despetaladas derramam-se como flocos de neve dourada a enfeitar o chão.

Não sei quem as trouxe, nem quando chegaram ao Brasil, mas vocês não acham que está aí mais um caso de imigração que deu certo?

***

*Título inspirado no romance de Luiz Antônio de Assis Brasil, A pedra da memória.
15/11/2013

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Dilma, Merkel, Hollande!, também fui espionado

Almiro Zago

Em tempos de Internet, celulares, tablets e afins, a espionagem voa à velocidade da luz. Em rasantes captura infinidades de dados e informações sobre tudo e todos, de governos, governantes e governados, de empresas.  Se a privacidade foi ao espaço, o espião pós-moderno deletou o fascínio do antecessor que empolgava escritores de romances policiais e roteiristas de cinema. Em contrapartida, a sua fantástica ação vem rendendo sérios problemas ao seu patrão. Por enquanto, os Estados Unidos. E olhem que nem os amigos de Obama escaparam da bisbilhotice eletrônica deles.

Ao que sei, a Presidenta Dilma foi a primeira vítima a estrilar, usando a ONU como caixa de ressonância das denúncias de violação de privacidade de pessoas e órgãos estatais. 

Viu-se, depois, na TV, nos jornais, nas redes sociais, a forte contrariedade de François Hollande e Angela Merkel, igualmente ofendidos pela indevida coleta de dados pessoais e dos seus governos pela turma da N.S.A. Itália e Espanha também não ficaram de fora.

Notem bem, aqueles dirigentes políticos foram espionados a distância e nem sabem exatamente o que viram os espiões. Sem dúvida, os cremes de beleza de Dilma e Merkel não foram tocados, nem seus objetos de uso pessoal. Tampouco Hollande teve reviradas suas cuecas e gravatas.

Mas comigo, tudo foi diferente, nada virtual. Abriram minha mala no domingo 15 de setembro, no aeroporto JFK, em Nova York, enquanto esperava embarcar para o Brasil. Só notei ao chegar em casa, ainda bem.

A minha querida e surrada mala vermelha, de tantas lembranças, foi revistada. Ao contrário de Hollande, Merkel e Dilma, estou sozinho, apenas com esta voz de locutor aposentado, sem mídia para repercutir minha indignação.

Mala de viagem, é para mim uma espécie de resumo do meu quarto que me acompanha aonde vou.

Ao perceber que o cadeado fora sacado, afastei os fechos com o espanto de quem encontra a própria casa de portas abertas pelos ladrões.  E aí deu-se a conhecer a sensação de ultraje, como se visse mãos estranhas revolvendo minha roupa, a limpa e a suja. E tocar na minha roupa suja é como devassar minha intimidade.

Menos mal que os agentes revelaram experiência no ramo, pois deixaram tudo arrumado, salvo os carregadores do barbeador e do celular.

Se Dilma, Merkel e Hollande ouviram vazias explicações de embaixadores, os meus espiões deixaram confissão escrita, em forma de aviso impresso em inglês e espanhol. O papelucho diz que eles têm permissão legal para busca de produtos proibidos em bagagens. Ah, sim, a finalidade era a de proteger a mim e aos demais passageiros do meu voo.

Meus olhos, que já iam umedecendo, num instante secaram ao ler que tiveram de inutilizar o cadeado – e não se responsabilizam pelo dano – porque só fazem isso quando a mala está trancada...

Dizem que viajar é cultura e aprendizado. Nessa ida a Nova York aprendi uma lição: não se tranca mala de viagem.

Claro, para facilitar o trabalho deles. Já os ladrões de aeroporto agradecem.

27.10.2013




quarta-feira, 12 de junho de 2013

A encantadora de sabiás

Almiro Zago

O que de excepcionalmente belo poderia oferecer uma fria manhã de junho?

Por certo, a proposição não espera resposta única, considerando-se a diversidade de interesses, de sensibilidade e de gostos, o imaginário de cada um, as expectativas etc. etc.

Mas esse tema nem me passava pela cabeça, quando o inesperado, o quase inimaginável me aconteceu no meu percurso de ida e volta de caminhada, no acesso leste ao Parque Moinhos.

Pois o sol das dez ia quebrando a friagem da manhã daquele quatro de junho. E a figura ajoelhada, logo na entrada do jardim do seu prédio, foi prendendo minha indiscreta atenção e atiçando a inescondível curiosidade.

O que lhe teria acontecido? Fora vítima de mal súbito? Quedara-se em oração?

Ou a feminina figura derramava-se em carinhos sobre seu cãozinho?

Fui encurtando o passo, e logo me vi estancado junto ao gradil com suspeita de hipnose. É que aos meus olhos abriu-se inesquecível imagem.

Era bípede o objeto de atenção da mulher.
Era ave.
Livre, como passarinho que era, pousada numa laje no gramado, vi uma linda sabiá-laranjeira!

O inusitado: sobre o dorso da sabiá, suave e afetuosamente, deslizava a mão direita da mulher. E a sabiá, podendo escapulir-se, permanecia quieta, recebendo os agrados.

Estava gostando, sim, dava pra ver, pois de cabecinha erguida, bico aberto, talvez até quisesse agradecer...

Guardei-me em silêncio, enquanto pude claro, para não quebrar o encanto, emocionando-me com o fato, tão belo quanto estranho.

Surpresa não haveria fosse pássaro de gaiola, ou preso pelas mãos. Mas a sabiá, sobre suas perninhas finas, de modelo, ali, quietinha, livre, pois nada a prendia.

Quebrada minha resistência, deixei escapar algumas palavras. E a mulher, sempre acariciando as costinhas da ave:
“Estou passando muita energia pra ela. É uma fêmea, bateu numa vidraça, há pouco.”

E o macho, esvoaçando por perto.

Nem sei bem quanto tempo teria durado a cena, quem sabe, dois, três minutos.

Entretanto, chegado o momento da partida, a sabiá, como quem sai de casa, sem aparentar fuga, num leve salto foi da laje à grama; em seguida, alçou vou ao encontro de seu companheiro, na palmeira próxima.

E chegando a este ponto, dou-me conta de que — pássaros — é o tema desta crônica e da anterior, e lá escrevi: por ter perdido a vizinhança do João-de-barro e sua Joana, só me restava esperar pelos ares de primavera e, com eles, os sabiás madrugadores. Os sabiás cantores.

Pois agora, um tanto intrigado, pergunto se esse tocante caso da sabiá — gratíssima surpresa em meu caminho — seria mera coincidência ou intervenção mágica da espécie Turdus rufiventris para me confortar?
                                                           
***

Nota: “Turdus rufiventris”: nome científico do sabiá-laranjeira.

7.06.2013





sexta-feira, 24 de maio de 2013

“Furnarius rufus”: o epílogo


Almiro Zago                                        
     
Eram aqueles dias de março em que se espera a benfazeja rotina, quase como se aguarda a mulher amada, no aeroporto, em voo atrasado.

Num amanhecer, noutro e outro, passei a sentir falta de alguma coisa, por ignoradas razões. 

Às vezes, alguma esquisitice me assalta, mas tudo acontecia ao acordar em minha cama, no silêncio daquela hora em que a noite prepara sua entrega ao dia.   

Já andava à espreita a oportunista ansiedade, quando um sentimento de perda, de ausência veio apertando o peito, ao acordar, semana, duas.

Enfim, abril entrou numa pontinha de inquietude e, certa madrugadinha, fez soar um trinado de pássaro, ao longe. Sim, do joão-de-barro vinha aquele som agudo, recuperando, em décimos de segundo, o código de ligação de conexões da memória.

Ah, o rumor dos vizinhos alados, pertinho da minha janela... Que falta me fazia!

Dizia-me, o desvelado enigma, que o adorável casal do lado, meus bons vizinhos, o João-de-barro e sua Joana, haviam alçado voo para lugar incerto e não sabido.  

Nostálgico, resignei-me aos fatos: aqueles gorjeios, não raro entre confusos estágios de consciência, nunca mais os escutaria, ao menos da forma afetuosamente familiar, como fora.

Se haviam chegado sem pedir licença, foram-se sem dar adeus. E também seus parentes, seus amigos, de cima a baixo dos cinco andares da face norte do meu prédio.

Como lembrança, ficaram suas casinhas, de porta aberta, abandonadas. Nem sequer tabuletas de “vende-se”, “aluga-se” deixaram...

Olhar da rua as desprezadas moradias entristece o coração, particularmente de quem teve amável convivência com os barreiros, acompanhando de perto a edificação do “conjunto habitacional”.

Ano passado, do verão ao fim do outono, tiveram, esses passarinhos, dias e dias de intensa atividade construtiva, como bem sabem os leitores da crônica “Furnarius rufus ou histórias de amor e trabalho”.

Quando notei o desaparecimento das aves, que tão próximas de mim viveram, cheguei a pensar em afastamento temporário; sem demora, voltariam, como as andorinhas, que atrasaram seu retorno na primavera italiana.

Ou, pior, talvez fosse sumiço, como o caso das abelhas.

Conforta ver barreiros na rua, no parque; ouço deles o típico chilrear, mas nenhum joão-de-barro voa por perto, nem pousa nos peitoris das sacadas vizinhas das moradias deixadas.
   
Sei, claro, que é da índole do casal joão-de-barro, de ligação perene, trocar de ninho a cada ano. Mas aqui, ao meu lado, por que a mudança em massa?

Por consolo, invoco o amor à liberdade dos pássaros.

E o que me resta é esperar pelos ares de primavera e, com eles, os sabiás madrugadores.

Os sabiás cantores.

(19.05.2013)

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Furnarius rufus ou histórias de amor e trabalho

Almiro Zago

Ao certo, ninguém sabe há quanto tempo vivem eles na vizinhança, mas certeza tenho de que por aqui chegaram bem antes de mim, embora poucas de suas habitações fossem vistas, até recentemente.

Alguma coisa mudou, pois ao final do verão, suaves e razoavelmente discretos e pacíficos, já haviam consolidado a posse de espaços, onde ergueram três moradias.

O outono, passaram em atividade, tanto que na chegada do inverno já eram cinco as edificações. E sem notícias de resistência de proprietários, ou pedidos judiciais de reintegração de posse.

Desconfio que os nossos invasores alados contam com um programa, tipo “Minha casa, minha vida”, da Dilma.

Coisa linda é ver da rua os “forninhos” de barro, em homogêneo estilo arquitetônico, numa espécie de condomínio anexo ao edifício onde moro.  Cada unidade habitacional, uma por andar, ocupa o ângulo da moldura decorativa, entre parede e sacada.

Sábios, os furnarius rufus escolheram a orientação solar norte.

Certificados pelo próprio DNA, os talentosos arquitetos trabalham em regime de cooperação conjugal, usando materiais ecologicamente corretos, recolhidos e carregados na ponta do bico. Já imaginaram as centenas ou milhares de idas e vindas até o final da construção?
 
Dispensados, claro, de autorização para construir, autoconcedem-se o “habite-se” ao seu ninho, quando acabada a parede que separa o corredor da câmara incubadora. Ao contrário deste habitante da parte de dentro do prédio, são isentos de IPTU, desconhecendo os aborrecimentos com as contas de água, luz, telefone e, ainda por cima, ignoram taxas ou despesas de condomínio.

Crônica publicada em 25 de julho de 2012 aqui.

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O adorável casal do lado

Almiro Zago

De acaso em acaso, acompanhei enternecido alguns momentos do trabalho de um dos casais forneiros, o João-de-barro e sua Joana, cuja união é para sempre. Quer dizer, sem separação ou divórcio. Ter-se-ia o Cristianismo inspirado nesses pássaros para afirmar a indissolubilidade do matrimônio? Ou o contrário?

Empenhado, o jovem par finalizava sua casa logo abaixo da minha janela. Mas o aparecimento de torrões de barro no peitoril da abertura denunciava atividade mais acima. Dito e feito: outra obra na base do andar superior, tocada pelo mesmo casal do andar de baixo.  Pelo jeito, a família vai crescer.

Garantindo proximidade, ao escutar um gorjeio, postava-me, qual estátua, junto ao vidro da janela, ou sacada. Assim, várias vezes, em diferentes dias, conferi a chegada de um dos pássaros com sua carga de material de construção na ponta do bico. Pousava perto do “forninho”, emitia um chilreio de aviso, ficando à espera de que o parceiro liberasse o ponto para completar sua tarefa.

Se faltava, a cena mais encantadora deu-se certa manhã, recém-clareado o dia. Pouco afastado, o João, entre um gorjeio e outro, olha para sua morada, como se estivesse a esperar por alguém. Correm alguns segundos e sua Joana aparece e a passos calmos vai ao seu encontro.

Amorosamente, ficam juntinhos como se combinassem um roteiro. Em pouco, alçam voo sobre o arvoredo e as ruas, livres de estresse e de toda sorte de preocupações que acometem a vida humana.                         

terça-feira, 23 de abril de 2013

As palavras faltantes


Almiro Zago                                                                               

Em seu livro As palavras, disse Jean-Paul Sartre que, no seu tempo de menino, tomava as palavras como a quinta-essência das coisas. A revelação, tendo sido feita pelo adulto, ao que saiba sem renegar o garoto, autoriza entender que, para o pensador do existencialismo, continuaram a ser as palavras as coisas no seu mais alto grau, na plenitude.

Ainda que assim seja, desconfio que a palavra, em si, seja neutra, fria. Guarda-se numa espécie de hibernação, em ponto de espera. E só ganha vida, substância e cor ao ser escrita, ou no instante em que os lábios a libertam. Então, assume a forma, a densidade e a força de quem a escreve, daquele que a pronuncia.

Aí a palavra se entrega qual meretriz. Mas periga escravizar, ora quem lhe empresta a voz, ora aquele que a faz perene pelos contornos desenhados sobre o papel. Porque é seu destino, cai prisioneira da mente que a recebe, do coração que a sente.

Usam a palavra, as pessoas, na tessitura dos laços de afeto, ou quando lançam pontes de amizade, ou na semeadura dos trigais para o pão que alivia a fome.

Mas ai! se vier a cair sobre ela o véu da falsidade, impregnado de inveja e rancor, pois, logo, o ódio e o conflito apressam-se a cultivar as desavenças no campo da miséria moral e material.

Também por isso, a palavra traduz a verdade e a mentira. O ser e o não ser. A palavra expõe corte e cicatriz. É navalha e carne; espinho e pele ferida; é febre e hipotermia.
Antes de tudo, é vida, mundo e morte.

Porém, de magia vestida, vem a palavra oferecer o êxtase da poesia e das canções. E desvendar o imaginário para a emoção de tramas e personagens do conto e do romance.

E a palavra voa, escreveu Walter Galvani. Em suas asas conduz a crônica instigante e encantadora.

Seja no breu da noite ou à luz do sol, há quem faça a guerra e dizime populações com a palavra. Todavia, esperançada e perseverante ainda floresce nesse solo árido a palavra paz, à sombra amiga e protetora de tantos que ainda a amam e cultivam.

Bem a propósito, certa vez, num cinema, vi e escutei uma mensagem de ano-novo, cujo final falava do desejo de que se avizinhasse o dia em que os homens não conhecessem a palavra paz por desconhecerem o significado da palavra guerra.

Distantes da utopia, pisamos o chão movediço da vida real, em coexistência com a palavra e seu inquietante poder, cujo controle repousa nos corações e mentes dos seres humanos.

Pouco custa a esperança de que consigamos marcar mais forte na palavra os tons da paz social, da alegria de viver, suavizando o estressante ambiente cotidiano. Para isso, vale a dica do poeta Olavo Bilac: a “palavra pesada abafa a ideia leve”.

Pois protegendo a ideia leve, execremos a palavra pesada, na busca de convivência mais fraterna. Quem sabe, restauremos a palavra de honra e a palavra dada; e o respeito, a honestidade, a vergonha, sim, a vergonha. Claro, também a sinceridade, o bem-querer e a cortesia, a solidariedade.   

Seguindo-se com tantas perdas, tantos desusos de significados positivos para a sociedade, receio que o dicionário do nosso idioma acabe tomado de assalto pela delinquência desassombrada.
                                                       
                                                   


sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Quando surpreende o menu

Almiro Zago
  
Quando entramos num restaurante desconhecido, seja lá onde for, corremos o risco de viver experiências no mínimo interessantes. Imaginem, então, se Madrid é a cidade, e o lugar é daqueles não procurados por turistas.

Pois a sugestão da casa para o almoço oferecia primeiro e segundo pratos e sobremesa, tudo acompanhado por vinho ou água mineral, a escolher. Ainda com as pernas doloridas das caminhadas, mas antes que a fome se fizesse má conselheira, aceitamos a sugestão porque incluía autêntica paella. Ah, claro, fomos de vinho: branco para Irene e tinto para mim.

Algo semelhante havíamos conhecido nas imediações da Porta do Sol, onde um cálice de vinho ou água mineral, inclusos no preço, acompanhavam a comida.

Enquanto aguardávamos o serviço, íamos ganhando a companhia de falantes e bem-vestidos madrileños e madrileñas, gente de trinta e poucos anos, em sua maioria. E o restaurante, mesmo sem couvert artístico, surpreendeu-nos com atração extra: uma ruidosa pechada de bandejas encenada por dois apressados garçons. Terminou a performance com um deles no chão, cercado de copos, pratos e garrafas quebrados.

Nesse clima festivo, um garçom arrumou nossa mesa e trouxe duas garrafas de vinho. Alguma coisa está errada, pensei, pois esperávamos apenas duas taças da bebida. Mas o moço esclareceu: "Uma botellia por pessoa: branco para a senhora e tinto para o senhor."

Susto à parte, quiçá pudéssemos beber tudo isso durante uma festa, ou numa refeição mais demorada, mas nunca num almoço. Que desperdício!

Bem, já que o néctar dos deuses convidava, começamos a degustá-lo à espera da comida. E com ela prosseguimos, especialmente com a saborosa paella.

Mas à vez da sobremesa, perto de hora e meia do início do almoço, do vinho tinto apenas lembranças de seu aroma exalavam da garrafa. Cavalheiro que sou, passei a prestigiar o vinho branco da Irene. Para encurtar o caso, ao final, duas garrafas e duas taças vazias sobre a mesa se defrontavam com um casal contente e sem efeitos colaterais. Está certo, grandes vinhos não eram, mas garanto a excelência deles.

Bem diferente foi o que vivenciamos num pequeno restaurante com mesas na calçada, lembrando cenas de cinema passadas em Roma. Eu sabia que o preço seria salgado, pois era pertinho da Fontana di Trevi. Pensando bem, valeria a pena abrir a mão, coisa de uma vez na vida e outra na morte. Só não contava com a mínima quantidade do prato que escolhera: cinco diminutos raviolis temperados com excelente molho, devo reconhecer. Ainda bem que o pão farto salvou-me da fome.

Entretanto, há casos em que a surpresa surge de um mal-entendido, garantindo um almoço de comédia. Falo de um restaurante de Dresden, numa travessa perto do rio Elba. Estando na Alemanha, e recém-chegados de Praga, tínhamos vontade de comer algum prato à base de salsicha.

No cardápio em inglês nada encontramos; em alemão, menos ainda, e o dicionário de viagem não o encontramos onde deveria estar. De todas as maneiras tentamos levar a garçonete a nos entender. Mas ela, além do alemão, nada sabia e nem versada era na linguagem dos sinais. Como último recurso, ocorreu-me luminosa ideia: desenhar uma salsicha num pedaço de papel. E desenhamos. Mostramos à moça, e ela sorridente parecia ter captado a mensagem, pois apontou o menu para que escolhêssemos o molho. Molho holandês, quisemos.

Nem bem provamos a legítima cerveja alemã, e toda risonha aproximou-se a atendente, colocando dois pratos grandes sobre a mesa. Finalmente as salsichas, festejamos. Com uma expressão que parecia significar "bom apetite", ela se afastou, e nós, com espanto, vimos dois pratos de aspargos verdes ao molho holandês. Decepção à parte, estavam deliciosos. Porém, uma dúvida ainda hoje me traz inquietação: fomos nós que não soubemos desenhar ou a garçonete não conhecia salsicha?

                                                               ***
 Texto publicado a 27 de março de 2008.