quarta-feira, 25 de julho de 2012

Furnarius rufus ou histórias de amor e trabalho


Almiro Zago 



Ao certo, ninguém sabe há quanto tempo vivem eles na vizinhança, mas certeza tenho de que por aqui chegaram bem antes de mim, embora poucas de suas habitações fossem vistas, até recentemente.

Alguma coisa mudou, pois ao final do verão, suaves e razoavelmente discretos e pacíficos, já haviam consolidado a posse de espaços, onde ergueram três moradias.

O outono, passaram em atividade, tanto que na chegada do inverno já eram cinco as edificações. E sem notícias de resistência de proprietários, ou pedidos judiciais de reintegração de posse.

Desconfio que os nossos invasores alados contam com um programa, tipo Minha casa, minha vida, da Dilma.

Coisa linda é ver da rua os “forninhos” de barro, em homogêneo estilo arquitetônico, numa espécie de condomínio anexo ao edifício onde moro.  Cada unidade habitacional, uma por andar, ocupa o ângulo da moldura decorativa, entre parede e sacada.

Sábios, os furnarius rufus escolheram a orientação solar norte.

Certificados pelo próprio DNA, os talentosos arquitetos trabalham em regime de cooperação conjugal, usando materiais ecologicamente corretos, recolhidos e carregados na ponta do bico. Já imaginaram as centenas ou milhares de idas e vindas até o final da construção?
 
Dispensados, claro, de autorização para construir, autoconcedem-se o “habite-se” ao seu ninho, quando acabada a parede que separa o corredor da câmara incubadora. Ao contrário deste habitante da parte de dentro do prédio, são isentos de IPTU, desconhecendo os aborrecimentos com as contas de água, luz, telefone e, ainda por cima, ignoram taxas ou despesas de condomínio.

O adorável casal do lado



De acaso em acaso, acompanhei enternecido alguns momentos do trabalho de um dos casais forneiros, o João-de-barro e sua Joana, cuja união é para sempre. Quer dizer, sem separação ou divórcio. Ter-se-ia o Cristianismo inspirado nesses pássaros para afirmar a indissolubilidade do matrimônio? Ou o contrário?

Empenhado, o jovem par finalizava sua casa logo abaixo da minha janela. Mas o aparecimento de torrões de barro no peitoril da abertura denunciava atividade mais acima. Dito e feito: outra obra na base do andar superior, tocada pelo mesmo casal do andar de baixo.  Pelo jeito, a família vai crescer.

Garantindo proximidade, ao escutar um gorjeio, postava-me, qual estátua, junto ao vidro da janela, ou sacada. Assim, várias vezes, em diferentes dias, conferi a chegada de um dos pássaros com sua carga de material de construção na ponta do bico. Pousava perto do “forninho”, emitia um chilreio de aviso, ficando à espera de que o parceiro liberasse o ponto para completar sua tarefa.

Se faltava, a cena mais encantadora deu-se certa manhã, recém-clareado o dia. Pouco afastado, o João, entre um gorjeio e outro, olha para sua morada, como se estivesse a esperar por alguém. Correm alguns segundos e sua Joana aparece e a passos calmos vai ao seu encontro.

Amorosamente, ficam juntinhos como se combinassem um roteiro. Em pouco, alçam voo sobre o arvoredo e as ruas, livres de estresse e de toda sorte de preocupações que acometem a vida humana.  

                                                           ***
P.S: Em respeito à privacidade dos meus vizinhos, deixo de apresentar fotos do local, mas clique aqui para ver outros exemplares do pássaro joão-de-barro em ação.
  

quinta-feira, 5 de julho de 2012

A ira dos deuses de Teotihuacán


Almiro Zago

Antes de ir ao México, se o assunto fosse civilizações antigas, pela minha mente passeavam nomes de povos: hititas, assírios, sumérios, babilônicos, egípcios, gregos, romanos. Por certo, esta fixação tem a ver com a forte influência da cultura europeia, base da nossa cultura. 

Claro, não ignorava terem vivido no México e América Central povos com notícias históricas remontantes há 1.200 anos a.C., como os olmecas, maias, toltecas, teotihuacanos. E os astecas, de Montezuma, de tempos mais próximos, tanto que foram eles que enfrentaram os invasores espanhóis e, por estes, levados à derrocada e ao desaparecimento como povo. Sua gente acabou por mesclar-se com outras origens autóctones e europeias.

Por ironia, os sítios arqueológicos pré-colombianos, contendo o espólio dos vencidos e de seus antecessores, representam o maior atrativo turístico mexicano. E foi num deles, Teotihuacán, 40 quilômetros da Capital, ao qual chegamos num sábado, sob o sol abrasador do meio-dia, que nos forçou a trocar o boné por um quase sombrero de palha.

Estávamos pisando em solo da ainda misteriosa Teotihuacán, a cidade sagrada do povo de igual nome, surgida por volta de 200 a.C. Floresceu, mas veio a desparecer com a dispersão de sua gente, que morava em seu entorno, lá pelos idos do ano 300 da nossa era. As causas da queda e o destino dos teotihuacanos, ninguém sabe explicar direito.

Outro ponto curioso é o de ter a cidade permanecido por séculos encoberta de lama e vegetação, a despeito da proximidade com Tenoctiklan, que cederia lugar à cidade do México. E isso a despeito do território ter sido adotado pelos astecas.

Nem os ambiciosos colonizadores espanhóis a conheceram, pois somente nos séculos XIX e XX grande parte de suas ruínas puderam ser reveladas e, a partir delas, arqueólogos lograram a sua reconstituição parcial.

Extasiados com tudo, confirmamos opiniões lidas ou ouvidas: o conjunto arquitetônico de Teotihuacán impressiona mais do que tudo pelas pirâmides. A maior, a do Sol, chega a 65 m de altura, tendo sua base dimensões iguais a de Quéops, no Egito. Escadarias de pedra, de degraus altos e estreitos, levam ao seu topo, que é alcançado por muitos visitantes, de onde admiram belíssimo panorama. Entre eles ninguém me viu, pois os meus joelhos vetaram a façanha. E o mesmo me aconteceu na Pirâmide da Lua, mais baixinha, de 42 m de altura, mas não menos bonita.


Pirâmide do Sol


Pirâmide da Lua   

Conformei-me com a planície. E sentindo a secura do ar pelas narinas, pensei que, além de amor pela astronomia, seriam românticos os teotihuacanos por construírem pirâmides em homenagem ao Sol e à Lua.

Porém, nada de romantismo inspira o nome do amplo caminho que percorríamos, ladeado por escadarias e pequenas construções, entre as duas pirâmides: Avenida dos Mortos. Certamente, homenagem aos que pereciam nos sacrifícios humanos, nos ritos religiosos. 

Para compensar, numa das laterais, vimos arte e poesia no conjunto do que restou do Palácio de Quetzalpapálotl, onde o Templo das Conchas com Plumas ainda conserva uma amostra de belos murais coloridos, com aves que lembram papagaios jorrando água dos bicos. E pertinho dali, no Palácio do Jaguar, pudemos ver fragmento do Mural da Onça Pintada, que, segundo nossa falante guia, representa uma onça com plumas, tocando instrumentos feitos de penas e conchas do mar.

Pois então, bem antes dos europeus pisarem no que seria a América, aqui havia vida inteligente, um povo conhecedor de astronomia, inclusive com calendário próprio e matemática, dominando as artes da pintura, escultura e arquitetura. Quer dizer, havia uma civilização contemporânea à romana, na época da crucificação de Jesus Cristo.

Nem pensar em ver tudo nesse sítio arqueológico em algumas horas. Mesmo assim, conseguimos nos despedir conhecendo o mais afastado dos monumentos: o Templo de Quetzalcoatl, que, na parede frontal, exibe máscaras em pedra da “serpente emplumada”, que é o significado do seu nome.

Vejam que interessante coincidência: a serpente figura na Bíblia do Cristianismo e do Judaísmo e, igualmente, nas manifestações religiosas dos teotihuacanos. Qual o significado disso?

Bem, para chegar àquele lugar, a certa altura, depois de subir e descer íngremes escadarias de altos degraus de uma espécie de plataforma, chegamos a um campo seco que leva ao monumento, exatamente no lado oposto.

Pois fizemos alguns passos, e, repentinamente, um forte vento carregado de poeira nos deteve. Parecia nos sufocar.

Cinco, dez segundos, nem sei bem, teria durado o fenômeno. Porém ao abrir os olhos pude observar o funil de um minitornado se afastando.

Seria aquilo um sinal dos deuses de Teotihuacán, contrariados com nossa presença?  Ou algo só comigo?

Pelo visto, compadeceram-se, pois seguimos em paz.
                                          

Máscaras em pedra da “serpente emplumada”


Maio/2012