quarta-feira, 27 de maio de 2009

sobre Júlia

Camila Canali Doval

A casa ficou assim. Abertas as cortinas. Reviradas as fotos. Desenroladas as toalhas. Trocada a ordem das almofadas sobre o sofá. Desfeita a cama. Terminado o aromatizador. Esquecidas as contas. Rasgada a lista de compras do mês. Desajustada a antena. Desvirado o elefante. Empoeirado o enfeite. Despidos os cabides um por um. Torto o quadro. Caído o pano de prato. Desligada e guardada a calculadora. Deixado o anel.

Não ficou nada. Em nenhum canto ou gaveta, dentro da máquina de lavar ou da geladeira, no armário do banheiro, embaixo da cama, atrás das portas, na caixa de cds ou nos arquivos do computador.

Mas a casa meio vazia era a Júlia. Um livro sim, um livro não, todos os vãos constando na estante. A macela secando no varal. O fio de cabelo escorregando pelo box de vidro. O resto do sabonete de erva-doce melecando a saboneteira. O café destampado perdendo o aroma. As camisas do Faustão perdendo a graça na tv.

Era a Júlia até aquela preguiça de pegar a coberta quando fazia frio no meio da noite.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Praga: o caso da porta


Almiro Zago

Um elogio inesquecível... não é isso que certas seções de jornal  perguntam a seus entrevistados? Fosse comigo, revelaria  aquele  recebido de dona Noêmia, ainda quando o número da minha idade começava pelo algarismo dois. Professora aposentada e fluente  em língua alemã,  ao encontrar-me numa certa segunda-feira, disse-me que não sabia que eu falava alemão... Neguei, claro.

- Mas, então, como é que pronunciaste tão bem todos aqueles nomes de músicas, de compositores e orquestras no teu programa de ontem?

Referia-se a obras  clássicas de   grandes mestres germânicos e seus intérpretes, por mim anunciados  no rádio.

Por esses dias, sons e vozes da Deutsche Welle    avivaram a lembrança daquelas palavras de admiração  por causa, digamos, de uma espécie de neologismo do vocabulário  alemão, de minha "autoria", em plena Berlim.

Foi no final de uma tarde de primavera. Já instalado no hotel, esperando alguma coisa, sentei-me no imenso hall  bem na frente dos elevadores panorâmicos, de última geração, desses  que    se movimentam somente com a inserção do cartão do hóspede num leitor interno. Quem o sistema não conhecesse  teria alguma dificuldade. 

Sempre havia alguém entrando nas cabinas. Um  ou outro se atrapalhava, mas   logo se via o ascensor subir.  Um casal de idosos, entretanto, ficou a ver o abrir e fechar da porta do inerte elevador. Fui auxiliá-los, demonstrando o modo de usar o cartão,  tudo sem palavras. Mal pensei em dizer algo e, nem sei de onde, saiu-me: "das confuzionen"!...

Acreditei ter dito grande bobagem ou  coisa muito espirituosa, pois ouvi  boas risadas dos velhinhos, certamente compatriotas de Goethe.

Mas se nos hotéis do Século XXI, em terras alemãs, turistas tropeçam em avanços tecnológicos, posso imaginar que, lá no Século XVIII, nada de semelhante possa ter acontecido ao  famoso viajante alemão, o escritor    Johann Wolfgang von Goethe,  em sua peregrinação pela  Itália, entre 1786 e 1788. Mesmo porque  o primeiro elevador de passageiros só apareceria   em 1853, bem depois e longe, tanto das estalagens ao longo dos caminhos peninsulares, quanto das cidades entre o Passo Brenner e a Sicília.

Em sua longa viagem, o grande autor de Werther   anotou em cuidadoso e metódico diário tudo que lhe aconteceu, o que viu e  lhe impressionou  no "solo clássico", como referiu-se ao território italiano. E o ilustrou com  reflexões e  comentários, além de desenhos de paisagens urbanas e rurais, por ele feitos, como se fossem  fotos tiradas pelo turista de hoje.

Anos mais tarde, todo aquele precioso material rendeu   belo livro (J. W Goethe/Viagem à Itália/Companhia das Letras) de agradável e imperdível leitura, mesmo nos dias atuais,   para quem ama o patrimônio cultural, artístico e paisagístico  da  Itália  e admira a obra dessa importante  figura  da literatura alemã e do Romantismo europeu.

E, por certo, o viajante   Goethe   não terá sofrido na  pousada  do "Signor" Moriconi, em Nápoles,  em maio de 1787,    constrangimento semelhante ao que passou certa turista ítalo-mexicana em hotel de Praga, e logo na manhã da partida para Berlin, em outro maio,  o  de 2005.

O micro-ônibus pronto para sair, mas não estava  Maria Teresa,  senhora distinta e cordial,  alta  e elegante, - uma mulher "in gamba"- , diriam os italianos, não obstante transitar  pelos seus anos setenta.

Um problema com a porta de seu quarto fora o motivo do  atraso, alguém comentou.

Soube-se, depois, que  Maria Teresa, tendo separado pertences de mão e as roupas do dia, fechou sua mala e tratou de deixá-la no corredor para os maleteiros,  sem querer sair do aposento. Uma dificuldade qualquer exigiu um passo a mais, maior esforço  para  empurrar o objeto. E, ao dar-se conta,  viu cerrar-se a pesada porta,   deixando-a do lado de fora... sem o cartão para abri-la.

Algo banal, dirá o leitor; nada  comparável ao trágico fim de Werther, personagem-título de livro de Goethe. Porém,  Maria Teresa teria desejado morrer ao ver-se, num corredor do Hotel Panorama, em calcinha e sutiã.

terça-feira, 12 de maio de 2009

As mãos do Pastor

Karen Scopel

     Suas mãos eram macias, talvez as mais macias que já toquei. Quando ele apareceu para marcar horário comigo achei estranho, os homens do bairro não costumavam freqüentar meu salão, faziam barba e cabelo na barbearia do Seu Cristóvão, mas, com aquela pinta toda e com a Bíblia em baixo do braço, imaginei que ele procurava um atendimento diferenciado, sim, é isto que eu procuro oferecer às minhas clientes e também aos poucos homens que atendo, tratamentos novos e cortes da moda, molhar o cabelo com aquele borrifador cheio de água morna e passar a máquina, nem pensar, lavo, corto, seco e escovo, dependendo do caso. Mais tarde ele me explicou, o salão do Seu Cristóvão não tinha manicure.

     No primeiro dia fiquei apreensiva, seu olhar intenso me deixou nervosa e aquelas mãos tão delicadas, tive medo de machucá-las. Lixar e tirar a cutícula eram, para mim, tão simples que podia fazer sem pensar muito, porém, sentada ali na frente dele, parecia que eu tinha desaprendido tudo. Respirei fundo e tentei tratá-lo como qualquer cliente, falei sobre o calor e de como a obra do outro lado da rua estava ficando bonita, ia ser a maior igreja do bairro, ele educado me corrigiu, não seria uma igreja, seria um templo e ele o Pastor responsável. Seguimos assim, nesta conversa esquisita, eu fazendo de conta que não estava nem aí, enquanto ele fingia não olhar para as minhas pernas.

     O Pastor João Pedro acabou se tornando cliente com horário fixo uma vez na semana. À medida que a obra avançava, ele também crescia aos olhos da comunidade, passava horas conversando com os moradores e convidava a todos para o culto de inauguração do novo Templo, que seria em breve.  As mulheres passaram a disputar os horários no meu salão próximos ao horário dele, ele não pregava, mas as escutava, coisa que a maioria de seus maridos não fazia.

     O Pastor, como ele gostava de ser chamado, me impressionou muito e os dias em que o atendia eram de ansiedade e inquietação, depois, à noite, sozinha na minha cama, tinha sonhos impuros, talvez até pecadores, fico em dúvida se sonhar também é pecado, se bem que às vezes eu não ficava só no sonho, mas no sonho, suas mãos macias acariciavam meu rosto, depois desciam pelas costas e infiltravam-se por entre as minhas pernas, várias vezes acordei assustada, agitada, quase sufocando, sentia meu corpo queimando de vontade de sentir aquelas mãos enluvadas de algodão, sim, era isso, eram mãos de algodão capazes de provocar arrepios e despertar desejos.

      Em uma tarde quente, logo depois do almoço, eu estava sozinha no salão e ele apareceu fora do horário combinado, mesmo assim, começamos o ritual, cortei suas unhas, lixei, quase que sem encará-lo, então, sua mão pousou sobre minha coxa, devagarzinho começou a deslizar por baixo da minha saia, ele aproximou seu rosto do meu e começou a sussurrar coisas que eu jamais pensei ouvir da boca de um Pastor, assim, fechei o salão por algumas horas e ele saiu mais tarde, pela porta dos fundos, com as unhas ainda por fazer. Não começamos a namorar oficialmente, achei que ele queria aguardar que o Templo fosse inaugurado para assumir nosso compromisso, na verdade, nunca tocamos no assunto, pois sempre que ele chegava de surpresa no salão, sentávamos frente a frente e eu mal tinha tempo de cortar ou lixar suas unhas. Também não sei se as pessoas desconfiavam do nosso envolvimento, mas notei que minhas clientes crivavam-me de perguntas sobre ele e, algumas vezes, seus comentários pareciam-me maldosos, principalmente quando se referiam às doações da esposa do Jorjão, o bicheiro, para as obras do Pastor.

     Estranhei quando, de uma hora para outra, ele diminuiu suas visitas inesperadas e até mesmo o fato de faltar sem aviso aos horários combinados para fazer as mãos. Porém, quando ele reaparecia, eu aceitava as desculpas e acreditava realmente que as suas tarefas com os pobres necessitados estavam deixando-o sem tempo e que captar fiéis era um trabalho árduo que demandava muito empenho. Estranhei, também, o surgimento de uma nova cliente, Telminha, a Sra. Jorjão, que tinha a fama de gastar horas e dinheiro nos salões de beleza mais chiques da cidade, além disso, fiquei muda quando ela me perguntou sobre meu relacionamento com o Pastor, não sabia o que responder, mas pressenti que não deveria falar muito, respondi apenas que ele era um ótimo cliente e seu trabalho junto à comunidade iria trazer muitos benefícios para todos. Ela passou, então, a falar sobre suas lojas preferidas e da cor dos cabelos para a próxima estação e antes de sair me disse num tom esquisito, não entendi se de aviso ou de ameaça, talvez os dois, que eu deveria ter cuidado, que nem tudo é o que parece, estava claro, ela estava falando dele. A conversa daquela mulher não saía da minha cabeça, contei ao Pastor, justamente para ver sua reação, ele ficou nervoso, senti, disfarçou e me disse que ela era excêntrica, para confirmar procurei essa palavra no dicionário, mas seu significado não combinava com a impressão que eu tinha tido dela.

     Um dia antes do tal culto de inauguração, abri o salão e havia um burburinho do outro lado da rua, em frente ao Templo, logo descobri que a polícia estava lá vasculhando tudo, entretanto ninguém sabia ainda dizer o motivo de tanto alvoroço. O Pastor tinha estado comigo na manhã do dia anterior, achei-o um pouco nervoso, mas imaginei que era porque o dia especial que ele tanto planejou estava se aproximando. A notícia de que algo de ruim tinha acontecido se espalhou rápido, tive que responder perguntas a um policial mal educado que trazia entre os lábios um palito de dentes, enquanto me ouvia pousava o olhar sobre o meu decote e mordia o palito agilmente, fazendo-o passear de um canto ao outro da boca. Poucas horas depois recebi a notícia de que o meu Pastor tinha sido encontrado morto, num beco imundo, não se sabia o que havia acontecido de fato, a única certeza que se tinha é de que quem o matou cortou-lhe fora as duas mãos, e, estas, não haviam sido encontradas. Meus sentimentos foram desajustados, senti uma dor esquisita e me senti sozinha, com medo lembrei logo das palavras daquela mulher. Fiquei meio sem rumo, não sabia se contava sobre nós dois, se falava dela, da Telminha, mas e a polícia, poderiam me considerar suspeita, não que eu tivesse coragem para uma coisa dessas, mas alguém podia pensar nisso, dizer que nem sempre se conhece as pessoas e que podemos muito bem nos enganar a respeito delas, resolvi me manter a calada. Muito se especulou sobre quem seria o assassino e os motivos de uma atitude tão brutal contra uma pessoa que parecia tão inocente.

     O velório marcou a inauguração do Templo e, no caixão, lhe puseram duas luvas no lugar das mãos, toquei nelas com receio, mas eram macias como se feitas de algodão.     

segunda-feira, 4 de maio de 2009

A azeitona do meu vermute

Almiro Zago

Publicada no semanário "Tempo Todo", de Caxias do Sul:

Ainda que seja por esquecimento, quem guarda tem. Recentemente, tive confirmada essa máxima  ao  abrir uma    caixa      cansada   de  mudanças. Primeiro,  apareceram  canecos de chope,  brindes recebidos nos meus tempos de Rádio Princesa. Depois,  ao fundo, mais parecendo   contrabando disfarçado, dei com três velhas garrafas de vinho originário de  Caxias do Sul. 

O rótulo esmaecido da primeira  dizia:   "Vinho Reserva, Rosado Licoroso Doce, Marumby",  da safra  de 1947, - cinco anos mais jovem do que "o locutor que vos fala".  Noutra garrafa,  e da mesma cantina, vinha identificado um "Finíssimo  Moscato"  doce, elaborado em 1954.  

Está bem, o  vinho  doce  anda   desprestigiado, meio marginal. Naquela época, entretanto,  deleitava  muita gente. Talvez estivesse mais para o que atualmente conhecemos como suave. E, para este,  amiúde era usado o adjetivo adamado.

Mas achei particularmente interessante o último: "Largo do Boticário", tinto maduro, 1971, de  Luiz Michielon, o mesmo produtor  do  Champanha  Michielon, concorrente do Mosele, ambos,  muito conhecidos  em todo o País.

Vinho, quanto mais velho melhor? Nem pensar, pois  não foram elaborados para enfrentar o tempo. E, pior,   "alguém"  faltou com os desejáveis cuidados, embora tenham servido  como peças decorativas de  minibar.

Para muitos,  entrados em anos, assim como eu, quem sabe ainda soe   familiar a marca Marumby, lembrança  de vasta linha de aperitivos.

Falando nisso,  as maiores vinícolas, além das duas já mencionadas: Cia. Vinícola Rio-Grandense, Mosele, Antunes, Brasileira de Vinhos e  cooperativas   diversificavam  produção e   faturamento com  derivados de  uva e vinho, tipo  vermute  e quinado, conhaque e graspa  ou grappa, se preferirem.

Se nos  filmes americanos, contemporâneos daquelas empresas e suas bebidas, sempre se via uma cena com alguém pedindo um   "dry Martini",  por aqui, longe das telas, o gostoso era beber um   cálice de vermute branco, seco, com  azeitona nele mergulhada. De marca  nativa, claro.

Michielon e Marumby muito representaram, também, para  o turismo em Caxias, pois haviam-se tornado  pontos de visitação obrigatória de grupos vindos, sobretudo, da Capital, do Rio e São Paulo. E Montevidéo, na Semana Santa.

Nem sei bem das causas, mas, para desencantos e perdas de muitos, as grandes vinícolas caxienses, uma a uma, foram saindo de cena, apagando o seu papel na economia fundada na uva.

Quanto às velhas garrafas  de vinho,  inspiradoras da crônica,  uma dúvida me constrange:  pelo seu valor histórico, devo doá-las  a algum museu temático, ou vendê-las  em leilão com lance mínimo no valor de passagem aérea  para alguma famosa região de vinhos da Europa?