quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

MINHA TARDE ORIENTAL

Almiro Zago

Quando vamos a algum lugar, quase sempre somos tentados, mesmo inconscientemente, a levar, passar adiante ou a criar estereótipos sobre o modo de ser e as características de sua gente. Pode acontecer que, vez ou outra, carreguem uma pontinha de verdade, mas todo o mais vai por conta da fácil generalização. Só para ficar com um exemplo, quem já não ouviu dizer que os franceses, os parisienses em particular, são mal-humorados ou coisa assim? Pois é, mas de minha parte, em diversos contatos com eles mantidos, aquele lugar-comum não vingou. E disso dou meu fiel testemunho revelando um interessante fato acontecido comigo só para dar bem uma idéia de como podem ser superficiais ou falsos os rótulos que afixamos nos outros.

Adentramos, minha mulher e eu, a uma pequena agência de turismo, às margens do Sena, no Quartier Latin. Ali, a única atendente, mulher de pouco mais de 40 anos, diante do computador ocupava-se com um cliente ao telefone. E demorava porque a pessoa do outro lado da linha era um daqueles tipos perguntinha, querendo tudo nos mínimos detalhes.

Pouco antes, dirigindo-nos ao balcão de atendimento, éramos os únicos clientes, mas, logo depois, ao voltar-me vi que já se havia formado uma fila às nossas costas. E a atarefada funcionária sem conseguir liberar-se do seu chato tele cliente. Mas em dado momento, mostrando-se preocupada com as diversas pessoas à espera, mirou-nos com um expressivo olhar teatral que tanto poderia ser um pedido de socorro quanto - desculpem, vejam só esse sujeito ao telefone não pára mais de perguntar coisas, e vocês aí esperando...

Bem, finalmente, terminou a negociação telefônica e fomos atendidos. Queríamos pouca coisa. Só dois bilhetes para o passeio, daquela tarde mesmo, à casa e jardins de Monet, em Giverny, a uns 70 quilômetros de Paris. Damos os nossos nomes e a mulher ao computador, confiante em sua percepção auditiva, rapidamente tudo registrou, concluindo o serviço com a impressão dos bilhetes. Colocados à nossa frente, enquanto eu providenciava o pagamento, minha mulher observou que o meu nome estava errado. E a atendente, preocupada em não tomar mais tempo com a correção e impressão de outro bilhete, minimizou ponderando que não haveria problema, pois serviria, apenas, de crachá de controle interno.

Mas aí ao apanhar o papel pude conhecer minha novíssima identidade. Passara a ser Nirosago por uma criativa e exótica redução, mais parecendo um nome artístico.
Impregnado pelos bons fluídos da expectativa de admirar as lindas paisagens que inspiraram o mestre do impressionismo, olhei para ela decidido a disfarçar o aborrecimento. Ensaiando um tom compreensivo, acabei concordando:

- Está bem, está bem...

E a atendente, agradecida, exibindo aquele sorriso que vai da boca às orelhas, confortou-me de uma maneira muito original, dizendo:

- Assim o senhor pode dizer que é japonês, não é?

Não pude deixar de achar graça, pois, além do mais, foi bacana ver outra vez desmentido um clichê sobre os parisienses.

Mas, em compensação, passei aquela tarde buscando achar alguma coisa em comum entre a minha cara e a dos muitos japoneses que encontrei no passeio a Giverny.

Sem sucesso, claro.

dezembro de 2007

sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

NATAIS NAS QUATRO OPERAÇÕES

Isabel Cristina CCarvalho

Admiro e gosto muito destes tempos de espera de Natais. Sempre me pareceram e continuam diferentes e singulares.

Na infância eu entendia este pedaço do ano como um lugar onde eu experimentava e exercitava sentimentos diferentes.

Era assustador, estimulante, mas caminho natural para uma criança curiosa descobrir afetos e vida. Nestes tempos infantis de espera de Natais somavam-se euforias, resignações, melancolias, alegrias e tantas decepções num caleidoscópio de emoções despertas e guiadas por frágeis "luzinhas-pequeninhas" de Natal.Nos tempos adolescentes dividiam-se generosidades, paixões, vaidades, rebeldias, aventuras, ressentimentos, invejas, ansiedades, otimismos, medos, expectativas, lágrimas e sonhos. Nos tempos de espera de Natais da minha juventude foi intensa e marcante a multiplicação de sentimentos novos; antigos; meus; dos outros e que me permitia compartilhar responsabilidades e valores. Multiplicaram-se brigas, carinhos, respeitos, rancores, humildade, admirações, ironias, cumplicidades, arrogâncias, servilismos e obstinações. Agora na fase dita madura, e para mim ainda de estranha maturidade, meus recentes tempos de espera de Natais têm tornado-se apreensivos e reflexivos.São tempos de espera mais rigorosos, pois me confrontam com os desafios da subtração, não só mais de sentimentos, mas com bens e atitudes.

Preciso subtrair materiais e vivências desnecessárias. Subtrair excessos de experiências, gestos desmesurados, incompatíveis, refratários, herméticos ou ociosos. E nestes outros novos tempos de espera de Natais, pedirei ajuda às "luzinhas-pequeninhas" para subtrair com discernimento e coragem as frações que farão restar em mim sentimentos mais nobres. Isabel Cristina CCarvalho Foto: Luzinha-pequeninha de minha árvore.

novembro de 2007

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

O QUE FOI FEITO DOS SONHOS

Camila Canali Doval

A violência nos corrói. Não somos nós mesmos; somos o medo. Não podemos agir conforme nossos instintos, correr pelas calçadas, devanear pelas madrugadas, voltar a pé para casa, ficar de bobeira bem no meio da praça. A violência nos corrói aos pouquinhos, tolhendo nossos passos, impedindo nossa plena existência. Viver é um risco e sentimos medo.

Todos nós sabemos que o fim está inevitavelmente na morte. Mas, em nossos planos - aqueles planos que vivem na herança genética e no inconsciente coletivo - a morte está realmente no fim, na última página, no momento em que o corpo cansa e pede água: a velhice. Morrer velho, pleno, sereno. Não mais um plano; um sonho.

Queria morrer velha. Queria que minhas pernas fraquejassem, que o meu coração falhasse, que a minha mente retornasse à infância para que a minha última lembrança deste mundo fosse um imenso e divertido play ground. Não lembraria de nenhuma dor que vivi, não lembraria nem de quem amei, só pensaria em o quanto é delicioso ficar assim, ao sol, balançando as pernas no ar.

Sonho. Morrer velha é um sonho que acalento com ardor. Que meus pais morram muito velhos, que meus filhos morram muito velhos e muito depois de mim, que todas as pessoas do mundo possam viver bem e até o fim. Assim é que seria certo.

Pois eis que o sonho substituiu o plano. O plano, hoje, é voltar para casa mais uma vez. É encontrar a família todas as noites. É não receber más notícias sobre os amigos. É reencontrar o maior número de vezes aqueles que saem porta afora.

A violência nos corrói assim: pelo antes. Pela espera. Pelo medo. Quem nasce hoje, não terá mais o mesmo sonho que os antigos. Não pensará mais na velhice. Quem nasce hoje conhece o quão bamba é a corda. Quem nasce hoje já perdeu a ilusão.

Fatalismo? Onde? Não estou vendo. É assim que me sinto. Frágil. Exposta. Medrosa. Medrosa por mim e por todos que amo. E por todos que não conheço, mas esbarro pelas ruas, assisto na tv, imagino a existência em algum lugar do mundo. Temo pelas mortes cruéis, prematuras, violentas. Temo pela orfandade. Pela viuvez. Pela saudade. Temo pelos atentados, bombas, chacinas. Temo pelos assaltos, seqüestros, vinganças. Temo pelos estupros. Temo pela falta de coração. De humanidade. De amor. Temo por tudo o que um ser humano é capaz. Temo pela política, pela desigualdade, pela inanição. Temo pela culpa de cada um. Temo pela minha culpa. Temo, acima de tudo, pela falta de sonhos.

Eu procuro não me afastar da Beleza. E o mundo é repleto dela. O mundo é feito de detalhes. Detalhes e deleites. A Natureza, os Sentimentos, a Arte. Em cada canto tem uma flor. Em cada janela tem o céu. Com sorte, tem o Sol. Com muita sorte, tem Lua. Uma Lua linda, redonda, prata. Em cada pessoa tem um coração. Em cada coração tem amor. Às vezes, parece que não tem. Mas sempre tem. Basta procurar com calma que o amor acaba aparecendo. E em todo lugar tem Arte. Arte, Arte, Arte para todos os lados. Todo mundo faz Arte. Todo mundo pinta e borda. Todo mundo tem algo para dar ao mundo. A Beleza é intrínseca ao mundo e à humanidade. E eu fico de olho. Eu toco, eu absorvo, eu experimento. Eu passo adiante. A Beleza deve ser passada adiante. Todo mundo tem que saber da Beleza. Meus filhos conhecerão a Beleza. Amarão a Beleza. Saberão que a Beleza está dentro deles. E também do Outro.

Aliás, nada mais Belo que o Outro.

outubro de 2007

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

PENDURADO EM UM GALHOZINHO

Karen Scopel

Ele floresceu. De manhã bem cedo ela estava lá, branca, delicada e perfumada, enchendo os seus olhos com suas pétalas de seda e invadindo o pequeno quarto com seu perfume. Estas pequenezas sempre o deixaram feliz. Desde que havia se mudado para aquele mundo tudo o que fazia era acompanhar o desabrochar do pequeno pé de Jasmim. Seu quarto era claro, ensolarado pela manhã e com um pequeno jardim particular, mas ao cruzar a porta e entrar no corredor tudo se tornava cinza.

O dia em que seu filho o deixou ali e se foi, ele pensou que morreria, que o ar sombrio do lugar, disfarçado que estava em paredes coloridas e seus quadros de paisagens, o sufocaria e o deixaria livre.

¾ Sim, estou bem. Não sei se vou me acostumar. Vou tentar. Até logo.¾ Era o que respondia às inúmeras perguntas que o filho lhe fazia ao telefone uma vez por semana. Seus pensamentos o confundiam, ora queria gostar, ora odiar, lhe parecia que apenas no meio destes conflitos sentia-se vivo.

Aquela manhã foi diferente, a pequena flor o observava dependurada em seu galhozinho frágil, como se o convidasse a estar ali a admirá-la. Com o passar dos dias, enquanto uma florzinha murchava outra ia se abrindo, tudo parecia menos triste, até as paredes adquiriram mais cor.

¾ As flores não duram para sempre.¾ foi o que disse ao ver a última florzinha no Jasmim, a única que ainda não havia despencado lentamente de encontro ao chão. Foi ao guarda-roupas, retirou de lá seu terno, vestiu-o com certa dificuldade, olhou-se no espelho e dirigiu-se então até a planta, retirou a pequena flor com todo o cuidado e apesar das mãos trêmulas ajeitou-a no bolso do paletó, há muito tempo não se sentia tão bem. Sentou-se em uma cadeira de frente para o Jasmim, fitou-o agora, desnudo de suas flores, mas ainda verde, muito verde, e como um pequeno galhinho seco foi caindo, não sentia dor, sentia apenas o perfume.


quarta-feira, 10 de outubro de 2007

"Muitas e muitas vezes, em nossa atividade jornalística e ou literária, enfrentamos o inesperado e agradável encontro com o talento. É preciso saber reconhecê-lo, seja no jovem que recém abre as asas para o primeiro vôo, seja no veterano que pratica o melhor de um nível que talvez nem suspeite haver atingido.

Almiro Zago, um deles. Um veterano, poderíamos dizer, longamente entregue a outras atividades e que me surgiu como aluno (e no entanto, o quanto aprendo com ele!) numa oficina de escrita criativa em que os formandos se autodenominaram mecânicos da palavra. Criaram até um blog do grupo, onde, vez por outra surgem maravilhas como este poema ("Entardecer" incluído nesta coletânea) do meu aluno revelação.
(
...)Almiro Zago, por certo no outono da vida como seu professor (preferiria dizer companheiro de aprendizagem) ainda nos terá muito para dar."

Eis o poema "Entardecer" do Almiro Zago, incluído no livro "Mínimas Confissões":

"Vem
vamos revisitar
antigos outonos
com a sonata do vento
a soprar aromas
e sentir o que fomos.

Vem
a estação ainda demora
vamos de mãos dadas
andar sobre as folhas caídas
pelos caminhos de outrora.

Ao pôr-do-sol
das vinhas esquecidas
uvas tardias colheremos
para suavizar a palavra
adoçar o olhar
nas horas estremecidas.

Depois
agasalhados de esperança
meias de lã verde-mate
esperemos o inverno
na varanda da memória
com chá de menta
e bolo de chocolate."

Walter Galvani

setembro de 2007

quarta-feira, 26 de setembro de 2007

AS MÍNIMAS CONFISSÕES E O VÔO DA GAIVOTA

Os Mecânicos da Palavra orgulhosamente apresentam o convite para o lançamento do livro "Mínimas Confissões", de Almiro Zago:



6 de outubro será um dia glorioso não apenas para o querido Almiro, mas para todos os Mecânicos, pois o livro "Mínimas Confissões" é mais uma conquista que se insere na história deste grupo:

Começamos a mais de um ano atrás, na Oficina de Crônicas O Vôo da Palavra, de Walter Galvani.

Construímos uma amizade.

Formamos um grupo de escritores.

Desenvolvemos este espaço.

E, agora, assistimos ao primeiro bater de asas de uma gaivota, ao primeiro nascimento de um fruto, à concretização de um ideal.

Parabéns, Almiro! E obrigado por mostrar o caminho.


quarta-feira, 26 de setembro de 2007


Américo, Karen e Isabel no Porto Poesia.


sábado, 8 de setembro de 2007

AS TAPETEIRAS DA TURQUIA

Almiro Zago

Jamais teria imaginado sentir inveja da Turquia. E, contudo, aos meus olhos mostrou-se um país menos injusto do que o meu, à parte a "disputa" pelas mais altas taxas de juros do mundo.

Duro é dizer que fui à Turquia, carregando a invisível bagagem de estereótipos e clichês ao longo do tempo assimilados. Por isso, não teria sido surpresa se visse multidões pelas cidades, sujeira, pobreza e coisas piores. Porém, logo ao desembarcar em Kusadasi, na linda costa do Mar Egeu, essa deturpada idéia começou a esmaecer, esfumando-se ao longo dos caminhos que me levaram a Ankara e Instambul.

Sabem lá o que se pode sentir, percorrendo centenas de quilômetros, Turquia adentro, sem deparar-se com sub-habitações, favelas e miséria? Pode ser que existam, entretanto, não aparecem aos olhos do turista. Vi pobreza sim, o que é bem diferente. Depois, se isso fosse pouco, andar pelas ruas da imensa Istambul do Premio Nobel Orhan Pamuk sem carroças ou miseráveis puxando pesados carrinhos cheios de sucata. Nem as deprimentes cenas de pessoas jogadas pelas calçadas, pedintes e, muito menos, crianças de rua.

Em lugar disso, uma Turquia poética mostrou-me muitas rosas: brancas, amarelas e vermelhas em cachos quase por toda parte. Esta imagem desperta a sensibilidade e a lembrança de que grandeza não falta à história da Ásia Menor - antiga Anatólia e maior porção do território turco. Exemplo disso, só para começo, são os objetos reveladores de culturas em priscas eras exibidos pelo Museu das Civilizações Antigas de Ankara.

Porém, em tempos menos remotos, foi berço do rei Midas, de Homero nascido em Izmir, Thales em Mileto. E Aristóteles, tutor de Alexandre - o Grande, viveu por alguns anos em Assos. Em sua geografia eleva-se o bíblico Monte Ararat e duas das sete maravilhas do Mundo Antigo lá situavam-se: o templo de Artemisa, em Éfeso, e o túmulo do rei Mausolo em Halicarnasso.

Éfeso, ou o que dela restou, ainda hoje encanta, particularmente, pela idéia arquitetônica da Biblioteca de Celso, que chegou a ter 12 mil livros, e o anfiteatro ao ar livre para 24 mil pessoas, muito usado antes e ao início da Era Cristã. Não longe dali, jazem as ruínas de Pérgamo, a dos inventores do pergaminho sucedâneo do papiro que pelo Egito fora sonegado.

Pois foi a Anatólia o primeiro centro importante do Cristianismo, e a Capadócia, refugio dos primitivos cristãos. Nas rochas porosas dos montes de tufa, escavaram suas igrejas e nelas deixaram afrescos com motivos religiosos. E mais perto do Egeu, edificaram a casa, hoje capela, onde, segundo a tradição, teria vivido a Virgem Maria.

Voltando à atualidade, outra coisa invejável são os roteiros turísticos turcos, pois oferecem segurança semelhante à proporcionada por qualquer país europeu. Pode-se começar (ou terminar) por Istambul que já foi Constantinopla e Bizâncio. Estação final do lendário Expresso do Oriente, além do mítico Estreito de Bósforo, a cidade cativa pelo mais belo de seus imponentes templos muçulmanos, a Mesquita Azul, e a antiga e grandiosa igreja cristã Santa Sofia, transformada em museu, após vários séculos a serviço dos fiéis maometanos. Instiga a imaginação observar esses dois monumentos arquitetônicos distantes no espaço por não mais de 200 metros e... mil anos no tempo!

Depois, o interior do país enche os olhos do visitante com o fascínio de suas paisagens. Entre tantas, o Castelo de Algodão, assim chamadas as rochosas colinas brancas em Pamukale, junto aos vestígios em pedra da romana Hierápolis. E as curiosas e intrigantes formações de tufa vulcânica na Capadócia - a terra dos cavalos lindos. Em esquisitos feitios esculpidos pelo excêntrico cinzel dos ventos, erguem-se as rochas ao longo de belíssimos vales, como aqueles do "Camelo" e das "Chaminés das Fadas", além do museu ao ar livre de Göreme.

Mas a Turquia, entretanto, viria revelar-me singular faceta: a das tapeteiras de Sentez. Ainda jovens, mulheres de prodigiosa coordenação motora e habilíssimos dedos tecem as tramas do que virá a ser um raro tapete, pelo jogo de fios em diferentes cores até formar harmoniosa estampa. Para cada uma, é faina de muitas semanas ou meses, conforme exija o tamanho da peça. Assim como o pintor ao retratar um corpo humano, também a tapeteira observa um modelo: a miniatura do tapete. É ela, verdadeiramente, uma artista e objeto de arte o resultado final de sua lida. Porém, diferentemente da tela do pintor, a assinatura da tapeteira ninguém verá em sua obra. Mundo afora, fria marca comercial usurpa o lugar de seu nome nos magníficos tapetes que ornamentam opulentos pisos e paredes.

Observações de viagem de maio/junho 2007 - Revisão em 31.08.07

agosto de 2007

terça-feira, 14 de agosto de 2007

FAMÍLIA ADOTADA (ou SÓ SENDO MESMO O FILHO DO CORAÇÃO)

Camila Canali Doval

Tem gente que chama melhor amigo de irmão adotivo. Mas não é não. Irmão adotivo é muito melhor.

Eu sempre achei muito bonita esta história de adotar uma criança e amá-la como se fosse filho nascido da própria barriga. Tem gente por aí que não ama nem os filhos da própria barriga. Do próprio sangue. Pois é. É bonito à beça amar uma criança que não foi fabricada por você. Mas, pensando bem, amar uma criança não é um sacrifício. Não é difícil. Não é uma luta. Amar uma criança é amar e pronto. A gente não vive se apaixonando por adultos, que são muito mais complicados? Amar uma criança é, como dizemos aqui no Sul, uma barbadinha.

Complicado mesmo é o lado da criança. Muita loucura ir parar no meio de uma família que você nunca viu. E tem pai e tem mãe e tem avós e tem primos e tem uma porção de gente nova para aprender a gostar. Todos dão palpite, todos julgam, todos acham que podem opinar. Uns gostam, outros não. Uns torcem o nariz. E poucos, muito poucos, fazem igual. A pobre criança tem que ter um coração do tamanho do mundo para entender, aceitar e perdoar tudo isso (graças a essas minhas conclusões, hoje, finalmente entendo porque o irmão adotivo é apresentado como o filho do coração. Na época, cheguei a desconfiar que meus pais não me amassem muito. Coloquem-se no meu lugar: soava muito mais caloroso ser o filho do coração do que o da barriga...).

E o pior de tudo que a criança enfrenta quando cai de pára-quedas em um novo e distinto seio familiar é que, às vezes, na tal da família existem irmãos. Todo mundo sabe como é ruim enfrentar concorrência. Na amizade tem concorrência, no amor tem concorrência, na escola tem concorrência, no vestibular tem concorrência, no mercado de trabalho tem concorrência, na entrevista de emprego tem concorrência, no emprego propriamente dito tem concorrência. Um porre. E lá vai a criança entrar em uma família já formada, com irmão nascido da barriga e tudo. Ô concorrência desleal!

Bem, eu sou uma irmã da barriga. E repito que irmão adotivo é muito melhor que melhor amigo. Amigo a gente escolhe do jeito que a gente quer. Meio parecido, que pensa meio igual, que gosta mais ou menos das mesmas coisas, dos mesmos lugares, dos mesmos outros amigos, dos mesmos tipos de filmes e, principalmente, de namorados bem diferentes. Já irmão adotivo vem totalmente na expectativa. Ele não sabe nada da gente. Ele não sabe se vai gostar da nossa comida. Dos programas de TV que assistimos. Da decoração da nossa casa. Da escola que estudamos. Das roupas que costumamos comprar. Da nossa organização. Da nossa educação. Dos nossos hábitos. Do nosso modo de ver o mundo. Do nosso modo de nos colocar no mundo. Da nossa maneira de amar. Das nossas tradições familiares. Do jeito que a gente é. Irmão adotivo chega tendo que administrar tudo isso e, cá entre nós, não tem nenhuma obrigação, já que nem filho da barriga ele é.

Irmão adotivo é muito melhor que melhor amigo porque - além de amar a gente apesar de todos os pesares - adota até a nossa cara.


domingo, 5 de agosto de 2007

UMA VIAGEM DE AVIÃO

Américo Conte

Você escolhe a empresa, o dia, o horário e o destino. Entretanto a sua capacidade de determinação e decisão ficam por aí. Pois, a locomoção propriamente dita, está ao encargo da aeronave e da tripulação, que fogem a qualquer resolução de sua parte, lhe ocasionando certo sentimento de fragilidade e impotência ao se acomodar em uma das poltronas destes dinossauros voadores, em que eles próprios não podem assumir toda a responsabilidade no comando da operação, porque ainda estão envolvidos a equipe técnica que avaliza a aptidão do aparelho para a viagem, e os controladores de vôo, que da torre de comando contribuem para o pleno sucesso do tráfego aéreo.

Assim também ocorre no cotidiano da existência de qualquer um, por mais que se imagine auto-suficiente e arrote prepotência por simplesmente ocupar algum cargo de chefia ou se encontrar na direção de um departamento, considerando que pelo fato de optar por algum restaurante, esteja decidindo pela sua alimentação, sem levar em conta o cozinheiro e mesmo as pessoas encarregadas de abastecer o local. Valendo-se da mesma premissa para a preferência e aquisição do seu vestuário.

O dinheiro que racionalmente você julga ser o fator determinante na manutenção das suas necessidades, contribuindo para a eficiência e a consolidação no padrão da qualidade pela seleção de suas opções, apenas viabiliza aquilo a que você está incapacitado de produzir. E este padrão estaria seriamente comprometido se você mesmo tivesse que com as próprias mãos confeccionar a sua comida e a sua roupa. Como no caso da grana usada para comprar a passagem não garantir o êxito da viagem, estando fora de sua alçada a segurança do empreendimento, por mais importante que você possa ser.

O fato de se dizer que cada um deve cuidar e atuar na sua área e especialidade, só vem a reforçar e a evidenciar a dependência e a sujeição a que estamos expostos nos outros setores.

Essas pinceladas foram apenas enunciadas para ilustrar com mais ênfase a vulnerabilidade e a pouca significância de um ser no aspecto mais amplo do convívio social.

Embora a física e a aerodinâmica claramente possam nos elucidar a respeito da navegação aérea, mesmo assim, nos resta um certo sentimento de incredulidade a respeito de que esses monstros de muitas toneladas possam flutuar a onze e doze mil metros de altura, cuja velocidade de até 800 km por hora não seja percebido pelos passageiros, muitas vezes ficando a impressão de que estamos parados e o movimento só é denotado pelo intercurso de algumas turbulências.

Pela minúscula janela podemos vislumbrar a magnitude do Planeta que surge superlativamente absoluto, mesmo apreciado em pequena parcela, reduzindo a dissolutas dimensões as estradas e os prédios das cidades, tornando parvos os ensejos de chauvinismos e bairrismos que perdem a noção do todo.

Se o vôo de uma nave gigante decodificado pela ciência nos deixa com uma "pulga atrás da orelha". O que dizer ou pensar desse planeta que aparentemente imóvel, também está solto no espaço e sabe-se lá a que velocidade, rodopia e movimenta-se pelas imensidões incomensuráveis.

Será que os maremotos, terremotos e vendavais são sintomas das turbulências do seu transcurso?

Toda essa magistralidade do planeta, certamente ficará irrisória se pensarmos em termos de galáxia, onde se torna latente a mesquinhez de nossa realidade.

Em uma pequena viagem de avião, não posso evitar que essas reflexões se apoderem do meu cérebro, e fico a imaginar o que estariam a pensar os outros companheiros da mesma jornada aérea.

julho de 2007

segunda-feira, 30 de julho de 2007

E quando a gente não parte e tem que ficar...

Isabel Cristina CCarvalho

E conviver com aquele tipo de situação que nos deixa com lembranças amargas e ainda nos faz perguntar: - e agora, como é que eu fico?

Foi o que senti no momento que eles decidiam se me davam ou não um tiro enquanto fugiam cinematograficamente com o meu carro; atropelando um jovem motoqueiro na esquina e me deixavam na calçada com um grito de pavor que ecoou pela avenida inteira.

Eu não me lembro do grito, mas jamais esquecerei o olhar de ódio de quatro assaltantes, com armas em punho, que cercaram meu carro em câmera lenta e numa cena tão absurda que eu só encontro justificativa na célebre expressão "por obra do destino".
Não me agrediram... Ou me agrediram? Nem sei como classificar um relato assim, mas um deles envolveu-me pelo pescoço, enquanto encostava a arma no meu rosto e apertava minha mão direita para que eu soltasse as chaves do carro, que inconsciente as mantinha comigo.

Faziam agitados, afobados, tantas perguntas que eu só conseguia olhá-los naquele estado de calma que surge no horror, sem responder ao que queriam.

Lembro-me apenas de repetir, sem parar a expressão "não, por favor,"; "não, por favor,", "não, por favor," enquanto, chocada, decifrava os significados das intuições que me inquietaram nos dias anteriores.

E não parti, fiquei. Fiquei completamente assustada, sem conseguir dormir pelo resto da noite, da madrugada, pelos dias seguintes e nestes que chegam aos poucos e que me fazem lembrar que estou viva, que a vida continua e que, além de agradecer aos céus, preciso reagir e me organizar.

Mas não é fácil ficar tranqüila com a mente em ebulição projetando as conseqüências de um assalto que não roubou apenas bens materiais mas também minha serenidade.

E agora parto, mesmo sem sair do lugar, para reflexões sobre meus valores, sobre o meu próprio sentido de existência e sobre as coisas boas que surgem com esta experiência.

E torno-me tão solidária quanto uma estatística aos que já passaram por isto, muitas vezes em piores condições e nem sempre tão poupados ou ilesos.

E agora, como é que eu fico?

Eu fico bem, inteira e com a descoberta de que o meu carro não era, mas meu coração sim, blindado! O ódio deles não me contagiou e não tenho mágoa alguma. Minha tristeza é não conseguir mudar o mundo para melhor.

Tive uma curva infeliz ao chegar ao meu portão de garagem, mas depois fui socorrida pela minha família, meus amigos, meus vizinhos. O motoqueiro teve um cruzamento infeliz e depois foi socorrido pela polícia.

O carro eu resolvo com o seguro. Documentos, bens, levam tempo resolver, mas recupero.
Já os marginais, lastimo, são dignos de pena, pois são párias que transitam na realidade de uma estrada sem partida, sem fiscalização, sem chegada, sem sinalização.

Um precipício sem retorno.

Sem socorro.

Sem fim.


quinta-feira, 19 de julho de 2007

E DE REPENTE...BUM.

Camila Canali Doval

E de repente o avião caiu. No caso, bateu. Ainda mais surpreendente, ainda mais aterrador. De repente, viramos todos um só. Um único sangue, um único parentesco, um único laço unindo todas as pessoas ao redor da tragédia. Porto Alegre ficou pequena na tragédia. Porto Alegre virou uma vila. De repente, todos nos conhecemos, todos temos alguém ou alguém de alguém dentro do mesmo avião.

Passei a noite escutando as notícias. Acordei e sigo escutando as notícias. Gritei no guichê da TAM exigindo informações. Listas. Nomes. Nomes que não quero ouvir. Sou um cidadão desesperado. Acompanho corpo por corpo que é retirado dos escombros. Sou um bombeiro. Acompanho cada reconhecimento. Sou um funcionário do IML. Olho para os cadáveres. Choro por todos como se fossem meus. E são meus. Viajo até São Paulo junto com os parentes das vítimas. Também eu sou parente das vítimas. Sou humana como as vítimas. Só que eu sigo existindo.

As causas do desastre serão investigadas. Algumas evidências deixaram de serem evidências para serem como as sinalizações de uma pista de pouso. Elas piscam, vibram, reagem. São de todas as cores e de todos os brilhos. Impossível não serem vistas. Elas começaram há dez meses atrás. Elas caíram dos céus junto ao avião da Gol. Elas vieram em desgovernada carreira e trombaram com o prédio da TAM no aeroporto de Congonhas. Que foi há pouco reinaugurado. Que não estava em condições. E onde estão os responsáveis? Bem, as causas ainda serão investigadas. É como se ninguém fizesse idéia. É como se fosse coisa do destino. É como se uma pista escorregadia fosse culpa pura e simplesmente do tempo. De Deus.

Estou até contente que o Governo ainda não tenha se manifestado. Seria cruel demais escutar depoimentos de gente que não sabe de nada. De um Presidente da República que tem chilique em público para mostrar serviço. De um presidente da Anac que aprendeu o que é aviação civil como presidente da Anac. De uma INFRAERO falida de moral. De uma ministra que merecia relaxar e gozar no inferno.

Porto Alegre, a grande Porto Alegre, ficou pequena de repente. Éramos tribos, éramos raças, éramos partidos, éramos religiões, éramos diferentes intelectualidades, éramos uma cidade e tanto movida por uma pluralidade intensamente enriquecedora, mas que, de repente, ficou pequena, bem pequena, do tamanho de um abraço. E nós, povo, ficamos ainda maiores. Como sempre ficamos diante do que escapa do controle de nossa humilde capacidade de compreensão.

Esse texto fala de Porto Alegre, mas Porto Alegre representa o Brasil - com exceção dos responsáveis pelo "acidente". Estamos à mercê dos "acidentes".

Esta Mecânica manifesta o seu profundo pesar por todos nós.

junho de 2007

segunda-feira, 25 de junho de 2007

ENTARDECER

Almiro Zago

Vem,
vamos revisitar
antigos outonos,
com a sonata do vento
a soprar os aromas
de frutos maduros,
e sentir o que fomos.

Vem,
a estação ainda demora,
vamos de mãos dadas
andar sobre as folhas caídas
pelos caminhos de outrora.

Ao pôr-do-sol,
das vinhas esquecidas,
uvas tardias colheremos
para suavizar a palavra,
adoçar o olhar
nas horas estremecidas.

Depois,
agasalhados de esperança,
meias de lã verde-mate,
esperemos o inverno
na varanda da memória
com chá de menta
e bolo de chocolate.


terça-feira, 12 de junho de 2007

NÃO POR ACASO

Camila Canali Doval

Não por acaso saí de casa, ontem, na maior chuva, para ir ao cinema. A verdade é que eu já previa uma tarde maravilhosa com a família, só eu e eles, como há muito tempo não fazíamos.

Não por acaso eu e minha família, ontem, éramos apenas quatro. no dia 2 de junho, em uma estonteante noite de inverno em Gramado, meu irmão se casou.

Não por acaso nós quatro, eu, meus pais e minha irmã, sentimos necessidade de estarmos juntos, um dia inteirinho, fazendo coisas deliciosamente banais. Realizando, silenciosamente, um íntimo ritual de despedida.

Não por acaso comemos pipoca, não por acaso olhamos os filhotinhos de cachorros na vitrine da loja, não por acaso conversamos sobre os últimos acontecimentos, planejamos o futuro próximo e fomos sorridentes e carinhosos uns com os outros.

Não por acaso o filme que assistimos não era um romance nem uma comédia, era um filme sobre a vida, sobre os rumos, sobre os caminhos que tomamos, as ruas que cruzamos, sobre as idas e vindas, sobre as ondas de sinais verdes que se propagam, sobre os sinais vermelhos também, sobre como, às vezes, perdemos o controle do jogo e a bola branca inevitavelmente cai na caçapa.

Não por acaso a história do filme falava de separação e fim, de ressentimento e perda, de paralisia e medo, da instabilidade das certezas, da vontade de fazermos sempre e apenas o que dará certo.

Não por acaso no filme tinha amor, muito amor. Amor para tudo ser verdadeiro, amor para segurar as barras, amor para tudo e todos encontrarem o seu lugar.

Não por acaso desde o filme não pára de chover um instante, como em todos os momentos dramáticos das cenas e da vida, e agora não há luz na minha casa, e reencontro , enfim, o papel e a caneta à luz destas velas, reencontro as palavras, reencontro meu pedaço afastado, reencontro o que há em mim que me impele dolorosa e docemente a criar.

Não por acaso a chuva lava as feridas dos últimos meses, a perda do emprego, a perda da confiança, a perda da certeza, o sentimento de rejeição, o medo de estar no lugar errado na hora que nunca foi marcada, a inesgotável fase ruim que só esgota com essa água toda caindo do céu, com esse abraço mudo e apertado na família, com um respirar fundo, com o enfrentamento de uma enxurrada de sentimentos assustadores necessitando de resoluções.

Não por acaso, às vezes, a tacada sai um pouco mais forte do que o planejado e é preciso recomeçar.

Não por acaso, às vezes, a sinaleira entra em pane e precisamos decidir sozinhos se devemos atravessar.

Não por acaso, ontem, assisti ao filme Não por Acaso. Não tem remédio para a alma melhor do que uma obra-prima.

maio de 2007

domingo, 6 de maio de 2007

QUANDO ALGUÉM PARTE, MAS AINDA FICA...

Isabel CCarvalho

É esta sensação que tenho sobre a ausência física e a presença afetiva de minha filha. Ela mudou-se há quatro meses para outro país e o cenário de despedidas durou um longo período, pelos trâmites da papelada consular e pelo seu próprio processo de ruptura com um cotidiano preestabelecido. Nossos recentes dez meses foram de instabilidade, ansiedade pelas expectativas dela em casar-se, concluir uma especialização, pedir demissão de um emprego, vender um carro, despedir-se de parentes em outros estados brasileiros e o mais difícil: descobrir quais os pertences que deveriam entrar neste futuro imediato. Isso fez parecer eterno a seleção da sua bagagem nos limites exigidos pela companhia aérea de no máximo dois volumes, de trinta e dois quilos cada, como também mostrou sua fragilidade ao ver sua vida inteira em duas malas!

Como amiga pude apenas torcer para que ela somasse sessenta e quatro quilos de artigos pessoais e como mãe esforcei-me para lhe dar coragem, além de entusiasmo e apoio por suas novas escolhas.

E ela "Fui"...

Quando voltei do aeroporto para casa, deparei-me com sentimentos nunca experimentados. Parecia que ela não havia embarcado, tal a maneira inusitada como deixou coisas suas esparramadas pelos ambientes. Ao invés de cair em prantos, eu não conseguia parar de rir ao ver o espírito dela acontecendo ali, alijado, como um rabo de lagartixa cortado e serelepe.

Havia sandálias e brincos na sala, lingeries penduradas nas torneiras do chuveiro; frascos de perfumes abertos nas estantes; bolsas nas cadeiras; secadores e chapinhas de cabelo sobre a cama. O teimoso pedacinho de creme dental, que sempre cai de nossas escovas de dente ainda escorregava pela pia. Roupas dela esvoaçavam no varal enquanto caixas abertas de cereais aguardavam novos desfechos. Barras de chocolate permaneciam sobre livros de leituras inacabadas e caixinhas e mais caixinhas, dentro de outras caixinhas, denunciavam as manias dela. O mais engraçado e surpreendente ainda estaria por acontecer no micro pessoal.

Com a foto dela estampada no vídeo, percebi o computador ligado, sem qualquer remoção de senhas ou configurações para evitar "download" de e-mails, mensagens ou chamadas telefônicas que continuavam a chegar, como se ela tivesse ido ali, na esquina. A Prata, nossa cocker, me olhou meio debochada, como se nada de anormal tivesse acontecido e com trejeitos de altivez e superioridade parecia dizer que eu deveria me acostumar ao novo modelo 2007, virtual, de convivência com minha filha.

Ainda estou me adaptando à rotina do "sem ela" e "com ela", pois fiquei com a missão de cuidar das bagagens que estão no compasso de espera para embarque, a qualquer momento, imediato! E este convívio com as coisas dela me faz muito bem.

Hoje perseguimos nossos encontros, imagens e falas pela internet. Driblamos fusos horários para conseguirmos cumprir uma agenda de trabalhos que nos propusemos a dar continuidade, independente do local onde cada uma estiver. E fico impressionada com a tecnologia que nos permite ficar num clicar de teclas uma frente à outra e com tanto realismo.

Não quero vivenciar a chamada "síndrome do ninho", quando os filhos vão embora e os pais ficam sozinhos. Hoje muitos pais soltam foguetes quando seus rebentos, e alguns já bem grandinhos, alçam vôos, pois acreditam que se os filhos ficam muito tempo no ninho correm o risco de não saberem mais voar.

Sinto falta de minha filha e já me peguei trocando o nome da Prata pelo nome dela, o que faz a nossa cooker supor dissimulada que agora é a legítima sucessora do reino.

Vivenciei através de minha mãe e familiares, o sentimento triste das perdas dolorosas de filhos, por tragédias ou desamores, sem qualquer possibilidade de contato ou retorno. Mas hoje experimento uma partida feliz, pois minha filha foi em busca de realizações e hoje me conta sobre estes novos horizontes.

E apesar da saudade, e do choro que teima em chegar sem permissão, sinto-me encantada com esta descoberta tão especial que me remete a "quando alguém parte, mas ainda fica...".

* Isabel é uma Mecânica-mamãe-coruja, que comemorará este Dia das Mães via internet com sua filhinha. Nós esperamos que essa nova fase, toda de saudades, renda muitas outras crônicas lindas e deliciosas como esta.
FELIZ DIA DAS MAMÃES!!

abril de 2007

terça-feira, 24 de abril de 2007

ERA UMA VEZ, HÁ UM ANO ATRÁS...

Camila Canali Doval

Hoje tenho uma história para contar a vocês. Uma história que começou há um ano atrás, nesta mesma época, em uma grande metrópole chamada Porto Alegre. Uma cidade realmente grande, mas não tão grande quanto todo mundo fica imaginando por aí, pois ela foi capaz de unir, lá no seu coração, em um pequenino lugar chamado Centro Cultural Erico Veríssimo, nove pessoas muito interessantes, que não tinham absolutamente nada em comum a não ser o fato de serem realmente muito interessantes.

De que será feita uma amizade? Quais serão os elementos necessários para que duas pessoas se conheçam e se encantem uma com a outra, de tal forma que se torne indispensável e indescritível a sua convivência? E um grupo? De que é feito um grupo de amigos? O que é mágico e poderoso o suficiente para unir pessoas tão diversas entre si? O que faz com que AQUELES olhares se cruzem entre tantos olhares, AQUELAS vozes se chamem entre tantas vozes e AQUELAS almas se reconheçam entre tantas almas?

Como eu ia dizendo lá no começa desta história, nesta mesma época, há um ano atrás, um insólito grupo começou a se formar. Digo insólito, pois não há nada de comum nestas pessoas. Quero dizer, as pessoas até que são comuns, são pessoas como tantas outras que vemos e conhecemos pelas ruas da capital gaúcha. O insólito, o surpreendente, o inimaginável, é que elas andem juntas, bem juntas, como se fossem uma banda de rock, um time de basquete ou um grupo de beatas da paróquia do bairro. Ora, ao nos depararmos, em uma metrópole como Porto Alegre, com uma banda de rock ou com um time de basquete ou com o grupo de beatas da paróquia do bairro, sabemos exatamente quem são e compreendemos na hora porque estão juntos. Já o grupo que protagoniza esta história não. Eu afirmo que, se você esbarrasse com eles em um barzinho chamado Santíssimo, por exemplo, comendo quiches e conversando sobre a vida, totalmente alheios ao telão que transmite o jogo do Internacional, poderia morrer tentando, mas não descobriria qual o elo que os faz sentar na mesma mesa e agirem com tamanho desprendimento, interagindo como se se conhecessem há tempos imemoriais.

Almiro, Américo, Camila, Isabel, Karen, Luciane, Marco e Walter. Um anúncio de uma Oficina de Crônicas, ministrada pelo Walter Galvani, no Centro de Cultura CEEE Erico Veríssimo, há um ano atrás. E então, cada um de uma forma, cada um de um lugar, cada um com seu objetivo efetuaram a sua inscrição. Sabe-se lá o que cada um pretendia com aquilo. Sabe-se lá que sonhos, que desejos, que ansiedades, que pretensões, que exorcismos cada um pretendia ao juntar-se ao grupo ainda sem nome, ainda sem rosto, ainda sem forma definida, ainda sem razão de ser.

E o tempo e os encontros semanais passaram um por um. Em cada quarta-feira, algo novo se revelava. Em cada crônica, algum detalhe se apresentava. Um medo aqui, uma mágoa ali, uma saudade acolá. Uma vontade represada, uma alegria descontrolada, uma fome de sei-lá-o-quê. E a necessidade que não havia - pois ainda não se conhecia - começou a brotar como uma semente em cada um daqueles férteis corações.

De repente, eles precisavam estar lá naqueles dias. De repente, eles precisavam escrever todos os dias. De repente, eles precisavam riscar, rabiscar, arriscar, ler, ouvir, ler mais alto, corrigir, refazer, ler de novo, trocar, confidenciar, relatar, opinar, consolar, ilustrar, criar, recriar, gritar em palavras escritas todos aqueles sentimentos abundantes e desorganizados que habitavam suas cabeças. De repente, eles precisavam um do outro para manifestar suas mais fantásticas expressões, para guiarem-se mutuamente no árduo e delicioso caminho da escrita, para apoiarem-se durante as crises, para experimentarem o novo, para assustarem-se com os erros, para vibrarem com os acertos, para darem empurrõezinhos, para cobrarem as faltas, para incentivarem sem parar uns aos outros, para crescerem, crescerem, crescerem como loucos, para todos os lados, de todos os jeitos, para andarem pelas ruas de Porto Alegre e todo mundo ficar olhando e pensando que coisa boa aquele grupo ali, tão parecido, tão diferente, tão tudo de bom, que vontade de ser um deles, de curtir a vida assim que nem eles, de ter o dom de escrever a vida, de registrar o mundo, bom ou mau, belo ou feio, do jeito que for, pois escrever é eternizar, é guardar para os próximos o que somos, é não esquecer o que somos, é reavaliar o que somos a todo instante, é ser o que somos para quem quiser ver - ou ler.

Hoje nós somos os Mecânicos da Palavra. E vocês?


segunda-feira, 9 de abril de 2007

48 HORAS NA CIDADE MARAVILHOSA

Karen Scopel

Conhecer o Rio de Janeiro em apenas um final de semana foi um desafio maravilhoso, tanto quanto a cidade que faz jus ao título que recebe. Foi impossível visitar todos os pontos turísticos e participar das inúmeras atividades culturais oferecidas. Será preciso voltar e permanecer por lá umas duas semanas para explorá-la, senão por completo, pelo menos com mais calma. A maratona foi grande, mas não diminuiu o brilho da viagem.

Como não havia tempo a perder, algumas horas após a chegada, na noite de sexta-feira, conhecemos (eu, meu marido e alguns amigos) a Lagoa Rodrigo de Freitas, onde vários bares com música ao vivo servem comidas e bebidas para os mais diferentes gostos. Dali mesmo, já é possível admirar uma das imagens mais marcantes e conhecidas do Rio, o Cristo Redentor, que fica no alto do Morro do Corcovado, a mais de setecentos metros de altura, e que iluminado fica ainda mais bonito.

A chuva não dava o ar da sua graça a mais de três semanas na Cidade Maravilhosa e o sábado amanheceu nublado e com mormaço. Isto não atrapalhou o passeio, mas frustrou a ida à praia e o banho no mar de Copacabana. Se bem que, Copacabana está poluída e não é aconselhável que se tome banho naquela região. Assim, uma caminhada pelo calçadão foi a atividade turística da manhã e foi aí que a realidade que acompanhamos pelos jornais e televisão tomou forma. Presenciamos um protesto contra a violência, em que mais de setecentas cruzes foram "plantadas" na areia da praia representando o número de mortos por assassinatos no Estado do Rio de Janeiro, desde o primeiro dia do ano até aquele dia, dezessete de março.

Ao passear por alguns bairros, como Ipanema, Leblon e Barra da Tijuca, é possível ver, por quase todos os lados, as favelas desafiando as leis da arquitetura e formando um mar de gente com suas casinhas, onde antes deve ter havido muito verde. Mesmo assim, ainda há muitas áreas arborizadas e regiões de Mata Atlântica preservada. A subida para o Cristo pela Floresta da Tijuca, uma destas áreas de preservação, é linda, a vista da cidade vai ficando cada vez mais bonita e quando se chega aos pés da estátua há o deslumbramento. São as famosas imagens dos cartões postais, não há como não se emocionar ao ver tanta beleza. Vai anoitecendo e um passeio de bondinho no Pão de Açúcar, com a cidade se iluminando aos poucos e a chuva brindando nossa passagem, marca o fim de um dia ensolarado, mesmo que o sol não tenha aparecido.

A noite carioca é bastante movimentada e o bairro boêmio da Lapa foi o destino escolhido. São muitas as pessoas pelas ruas, há congestionamentos de carros e de pedestres. A maioria dos bares, restaurantes e casas de shows ocupa casarões antigos. Fomos conhecer o Rio Scenarium, um casarão de três andares decorado apenas com artigos de antiquários. Para quem, como eu, adora antiguidades, foi um presente para os sentidos, parecia uma viagem no tempo. Para completar, a música ao vivo não poderia ser outra, samba, no melhor estilo, bom de se ouvir e de dançar, ou melhor, sambar.

Ainda tivemos tempo de conhecer o Forte de Copacabana, que além da importância histórica, proporciona uma linda vista para as Praias do Arpoador e de Copacabana. Não poderia faltar também, uma caminhada pelo calçadão de Ipanema e um banho de mar.

Foram 48 horas inesquecíveis, que nos mostraram um Rio de Janeiro diferente do que temos visto ultimamente nos noticiários, parecendo-se mais com a cidade mostrada nas novelas do horário nobre. A violência existe e, infelizmente, está presente no dia-a-dia de todos, moradores e turistas, para alguns mais e para outros, menos. Trata-se de uma situação difícil de ser revertida, e isto pode-se perceber com uma conversa rápida com um motorista de táxi, por exemplo, que fala da polícia e dos traficantes sem fazer distinção, parece que não há diferença entre os que deveriam ser "os mocinhos" e os que são bandidos. Existe, sim, a realidade do tráfico, da corrupção e dos tiros trocados entre os grupos rivais. Porém, mesmo com esta realidade, valeu a pena. Como diz a música, "o Rio de Janeiro continua lindo".

março de 2007

quarta-feira, 28 de março de 2007

DESTINOS ROUBADOS

Almiro Zago

Deve ser a palavra árvore uma das mais bonitas da Língua Portuguesa. Não apenas o vocábulo, mas, de modo particular, a coisa que designa. Aos meus ouvidos, árvore soa bem como sua ramagem ao vento. Se é certo que seja um dos seres vivos mais presentes em nosso planeta, pode alguém conceber a idéia de vida sem a árvore? A gritante impossibilidade, no entanto, insuficiente tem sido, ao longo dos séculos, para refrear o auto proclamado rei da Criação em sua sina de abatê-la. Embora, às vezes, possa ter agido por nobres pretextos, no mais, ontem como hoje, o movem a cobiça, o espírito destrutivo.

A despeito de tudo, é amada por muitos, e há gente cuidando de preservá-la. Plantam-se muitas de suas espécies, inclusive para ornamentar, dar sombra e purificar o ar das cidades. Que bom que seja assim em Porto Alegre. Ainda que, de quando em quando, se ouça o infernal matracar da motosserra a abrir grotescas clareiras, deformando as copadas de muitas plantas indefesas. Elas se mostram por aí violadas em sua essência e natureza só porque ao buscarem o alto e a luz ousam acariciar os intrusos cabos da energia.

Bem a propósito, se Mário Quintana confessou sentir uma dor infinita das ruas de Porto Alegre por onde jamais passaria, de minha parte, cá na planície, sinto uma pena infinita das árvores mutiladas das ruas por onde tenho andado. Como se isso fosse pouco, mais a tristeza me aperta quando vejo tipuanas desfiguradas, pois foi debaixo de um exemplar dessa espécie que vivi os momentos da mais remota de minhas lembranças. Daí a razão de ser a tipuana a árvore primeira da minha existência.

Mas, também, desde a infância outra planta me fascina: o plátano, sóbrio e majestoso. Dourado no outono, liberta, uma a uma, suas folhas para passarem os raios do sol, quando de sombra já não precisamos.

Pois um certo plátano, - me vem alegria ao recordar, - cativou minha simpatia e afeição numa clara manhã de um fevereiro. Terá sido há uns nove, dez anos talvez. Junto ao lugar onde tenho passado com a família alguns dias de veraneio, tangido pelo acaso, encontrei-me diante de uma esguia e frágil arvorezinha. Ela e eu, mais ou menos, emparelhávamos em altura. Só para ir comparando o seu crescimento, cuidei de ser fotografado ao seu lado, o que repeti, em quase ritual, à mesma época, por alguns anos seguidos. Era até bonito ver a minha figura ficando pequena diante da planta, a cada ano mais viçosa. E nos últimos verões, já se exibia o plátano alto e frondoso.

Outra vez chegou fevereiro e, como de costume, retornei a Cachoeira do Bom Jesus. Tudo parecia estar como antes, porém, não se encontrava o plátano amigo. No que fora o seu espaço, nada além do vazio. Deixei-me ficar estático, como quem estivesse na cena de um crime, sentindo a mágoa e o desencanto negarem-me ânimo de procurar saber alguma coisa sobre o seu desaparecimento. Talvez temesse ouvir explicações estúpidas como "dava muito trabalho varrer as folhas pelo chão; as raízes prejudicavam as tubulações."

Vividos os imperceptíveis dias de praia, um pouco antes de vir embora, consegui vencer o temor. E perguntei. Então, o meu sentimento de perda conheceu um sopro de alívio: o plátano não resistira a um arrasador vendaval sobre a Ilha de Santa Catarina. Menos mal, me conformei. Uma força da natureza, e não a insensatez humana, o havia abatido. Mas a nostalgia, hoje, veio me dizer que, assim como as árvores mutiladas das ruas de Porto Alegre, também o plátano ilhéu teve roubado o destino de tornar-se uma "árvore mais bela quanto mais antiga", como as "Velhas árvores", da poesia de Bilac.

Crônica escrita em Fevereiro de 2007


terça-feira, 13 de março de 2007

LULA GOLEADOR

Walter Galvani*

Foram dois pênaltis que Lula converteu em gols no goleiro Sérgio Cabral, governador do Rio. Ampliando a metáfora, foram os gols que ele conseguiu marcar no povo brasileiro, com suas últimas atitudes em que combina a malícia do jogador brasileiro, com a sua habilidade individual e a característica fuga a manutenção de posições. No futebol isso tem feito a glória e o sucesso profissional para nossos jogadores. Na política, não sei... Você votaria hoje em Lula, se ele se apresentasse como paladino dos oprimidos, dos sem-nada? Ou você votaria nele por representar o comedimento, a tolerância, a compreensão dos problemas brasileiros, no molho da adequação e da conveniência?

No gramado do "maior estádio do mundo", preparado para a final da Copa de 50 que o Brasil perdeu em casa por excesso de confiança e desprezo pelo adversário (Uruguai, 2 x 1, 1950), Lula, sem sapatos, calças arregaçadas, chutou três bolas contra o gol de Sérgio Cabral. Marcou dois e perdeu um. É exatamente o que ele está fazendo com o povo brasileiro. Chuta uma bola daqui, outra dali e vai convertendo umas, perdendo outras, mas vai levando o jogo, agora já no segundo tempo. Há gols perdidos (ou contra) como o da derrubada da Poupança, gol da Febraban, por exemplo, de difícil recuperação. Como é que eu, contribuinte pequenino e ferrenho defensor da minha caderneta, vou agir depois dessa? Ainda bem que ele não expropriou meus recursos como o Fernando Collor que, aliás, é agora seu aliado político.

Há muitos gols perdidos, muita bola fora. Por exemplo: a destruição da Amazônia, a transformação de nossas matas em ninhos da monocultura, de olho nos recursos provenientes do reflorestamento artificial, da "eucaliptação" dos nossos campos! Gol das multinacionais, as mesmas que Lula condenava nos tempos em que ajudou a fundar o PT. Honra e glória para ele, mas os partidos, como as pessoas, mudam. Crescem, envelhecem, vão colecionando rugas, decepções, frustrações e ao final de tantos tropeços, não são mais os mesmos. Nem os homens, nem os partidos. Deveria "incluir-se" no seu "combate à hipocrisia". Não é só de preconceitos religiosos que se tem feito política no país e Lula, hoje, é um político tradicional no mais castiço sentido brasileiro.

Hipocrisia, por exemplo, é não aprovar medidas mais duras na área de segurança, de olho nos votos que até os presídios produzem. Em resumo, a política em ação no Brasil é a mais hipócrita que se possa imaginar, algo assim como condenar o jogo, o tóxico e apoiar o apadrinhamento das escolas de samba por "bicheiros" e outros "banqueiros"... Mas, livrai-nos do mal, amém, diz a oração cristã.

* Escritor e jornalista brasileiro, nascido em 1934 em Canoas (RS) tem 51 anos de carreira como jornalista e 35 como escritor. Está em seu 10. livro: Crônica, o vôo da palavra . Seu livro mais premiado é até agora "Nau Capitânia".

Além disso, Galvani é o mestre que reuniu, em sua oficina "Crônica: o vôo da palavra", estes Mecânicos que aqui escrevem. Ele é o nosso professor querido, o vô da Isa, workaholic de plantão, muso inspirador dos nossos rabiscos e um amigão que está sempre presente, incentivando, apoiando e "lambendo" o nosso blog.

fevereiro de 2007

terça-feira, 27 de fevereiro de 2007

BREVE RELATO

Marco Antônio Poglia

Conheci, no ano passado, um senhor chamado Jaime Viñas. Tinha sessenta e três anos de idade - intensamente vividos, pelas histórias que contava. Com sua voz aguda e ar entusiasmado, falava sobre suas andanças pelo sul do continente e sobre as variadas aptidões que possuía, e que lhe permitiram trabalhar em diversos setores de serviços, além de ser pescador e por muitos anos praticante de boxe e natação.

De origem uruguaia, orgulhava-se de falar a língua castelhana. Talvez por isso gostasse tanto de autores latino-americanos, como Juan Ramón Jiménes, Jorge Luis Borges, García Márquez e Neruda. Também cantarolava tangos de Carlos Gardel, que sempre considerou melhor que Piazzolla. Não pronunciava mais do que algumas frases em inglês - e outras em língua que dizia ser francesa, e eu acreditava - mas gostava muito de Alan Poe e Ernest Heminguay. E ainda Dostoievski e, no Brasil, Aluísio de Azevedo.

Já há alguns anos Seu Jaime andava pelo Bom Fim, onde acabou se estabelecendo. Morava na rua Tomás Flores, esquina com a Vasco da Gama. Rodeada de prédios pequenos e quase ausente de estabelecimentos de comércio, é uma rua sombria e muito tranqüila à noite - pelo menos aos que habitam esses prédios. Mas não era o caso do Seu Jaime, que como disse, morava na rua (a rua Tomás Flores).

Na última vez que o vi, em outubro passado, estava muito abatido. Visivelmente doente, sentado na beira da calçada com olhar triste e desfocado. "O cara que tá nessa vida tá sujeito a ficar depressivo", resmungava cabisbaixo, enquanto lhe escorria uma lágrima esbranquiçada sobre o rosto. Perguntei o motivo da sua tristeza mais pra ter assunto do que pra confirmar o que notava: todos os seus pertences (papelões, garrafas, cobertores) haviam sido levados, e sua moradia se resumia agora a um muro branco com cartazes eleitoreiros e uma calçada, limpa, para o trânsito do povo educado.

Fui embora com a sensação de que não iria mais encontrá-lo. Passados alguns dias retornei com alimentos e um cobertor, mas antes disso cumpriu-se minha profecia. Sob o laudo de coma alcoólica e registro como indigente, seu provável futuro foi servir para experimentos da faculdade de medicina. Hoje melhor compreendo por que nas ruas de Porto Alegre homens dormem abraçados em seus pertences. "Quando a gente gosta é claro que a gente cuida". Há alguns dias, caminhando na rua da República pela manhã, uma cena lastimável me aperta o peito: um menino dormia sobre a calçada, com uns farrapos de roupas e um pedaço de cobertor, entornando com um dos braços seu único e perecível objeto de apreço: uma banana madura, talvez por muitos desejada.


quinta-feira, 22 de fevereiro de 2007

PROSTITUIÇÃO

Américo Conte

Não estou aqui, absolutamente, a tomar partido do que quer que seja e nem a defender atitudes que também independem de qualquer avaliação. Mas, simplesmente a frisar conceitos que não posso deixar de observar.

Vivemos inseridos em uma sociedade que tem como norma impressionar-se com tudo que visceralmente se relaciona ao corpo físico. É lógico que imprescindivelmente o corpo é tudo do que dispomos para a possibilidade dos contatos e relações, desde os mais afetuosos e sexuais deleites, assim como os atritos e mortais agressões. Todavia a violência imposta pelas exigências da beleza e da jovialidade com os seus vestuários de grife, como se estes fatores fossem indispensáveis para a realização de um humano, insensivelmente passam desapercebidos. E cada indivíduo que se vire e se desdobre como puder na procura e na manutenção destes atributos. A conjuntura a respeito sobre a subsistência dos caprichos sociais de um cidadão, não é condescendente com ninguém. E salve-se quem puder.

No entanto as pessoas ficam totalmente chocadas e intolerantes com o uso do corpo como meio de sobrevivência, através da prostituição sexual.

Acredito que só a disponibilidade do corpo para todo e qualquer ofício, é o menor dos malefícios. Porque as empresas, instituições e ideologias, não se contentam simplesmente com a absorção desta matéria. Elas exigem bem mais, para o sucesso de seus empreendimentos e objetivos. Querem suas mentes, suas essências e suas energias que sugam sem piedade até a última gota deste sumo. E pela falta de oportunidades e perspectivas, manipulados ou inconscientes, homens e mulheres entregam a sua saúde, sua alma e os seus sonhos a preços irrisórios, prostituindo-se e abdicando dos seus ideais em prol de supostas facilidades que aparentemente inofensivas comprometem a integridade do seu ser e os mantém escravos, dependentes e subservientes de artificialidades por uma vida inteira.

E muitas e muitas vezes, vazios e desencantados, estes seres vem suprir as suas carências nos corpos dos que abominavelmente condenam como réprobos.


AMADOS BICHINHOS

Américo Conte

A galinha não estava
no quintal, para enfeite,
mesmo os seus ovos fresquinhos
não a poupavam do batente.
Entre as plantas verdejantes,
tinha um oficio a desempenhar,
catar formigas e lesmas,
também outras pragas...
que as viessem ameaçar.
Se acaso em sua missão
ela viesse a falhar,
na cozinha, a panela,
era um espectro...
a lhe aterrorizar.
Todo bicho queridinho
sempre tem uma função,
e se ele não se comporta,
o destino, não há se ser bom.
O homem é sempre companheiro
se fizerem o que ele quer,
mas, se acaso é desacatado,
salve-se quem puder!


segunda-feira, 5 de fevereiro de 2007

O GOSTO DO BEIJO

Karen Scopel

Doces, eles eram sua obsessão, sua mania, comia-os muito devagar, saboreando cada pedaço, deixando aquele que mais gostava por último, assim permanecia com seu gosto na boca por mais tempo. Enquanto a maioria das pessoas morde o bolo começando pela cobertura, ela não, ia comendo aos pouquinhos e, por último, se deliciava com a cobertura.

Esperava que no amor também fosse assim, queria encontrar um homem e sentir o seu gosto, de preferência se deliciar com ele para sempre. A primeira vez que viu Lucas, ele estava podando as árvores no jardim da casa vizinha, da janela do segundo andar pôde admirá-lo. Ele parecia cuidar tão bem daquelas plantas que ela chegou a pensar que um dia gostaria que ele tivesse com ela os mesmos cuidados.

No dia seguinte, convenceu a dona da casa em que trabalhava de que o jardim precisava de melhorias e que, inclusive, o da sua vizinha estava muito bonito. O novo jardineiro era entendido no assunto e de confiança, ela já havia se informado.

Foi assim que Lucas entrou em suas vidas, na dela e na de Júlia, para quem trabalhava fazia dois anos. Já no primeiro dia, esforçou-se em ser notada pelo jardineiro, de hora em hora lhe levava água ou refrescos, no meio da tarde providenciou até um lanche, imaginou que o rapaz devia ser tímido, pois mal levantava os olhos para lhe agradecer.

Veio o fim da tarde, e com ele, Júlia. Uma mulher alta, de olhos claros e cabelos longos. Naquele dia vestia uma saia de florzinhas e uma blusa branca, estava bonita. Da mesma janela em que observava Lucas, viu Júlia ultrapassando o portão, pôde ver, também, que ele finalmente ergueu os olhos, enxugou o suor do rosto um pouco envergonhado e olhou Júlia com um misto de surpresa e fascinação. Conversaram um pouco sobre as mudanças no jardim, enquanto ela permanecia na janela, sentindo um aperto no peito e um arrepio que lhe cortava a alma. Sem entender muito bem o porquê, desviou o olhar e fechou a cortina.

Nos dias que se passaram continuou tentando agradar Lucas, arrumava-se melhor, estava sempre com a boca pintada de um batom cor-de-boca, como a vendedora da loja lhe havia dito, passou a usar o perfume ganho no Natal e que reservava apenas para as datas especiais. Achava que valia a pena usá-lo para o Lucas. Para seu desespero, passou a notar que ele, ao final da tarde, antes que Júlia chegasse, usava a mangueira do jardim para se lavar, começou também a trocar a camiseta suada por outra limpa, que trazia dobrada com cuidado dentro da sua mochila de trabalhador.

Que gosto teria aquele beijo? Era só nisto que ela pensava. Acordava no meio da noite durante seus sonhos, nos quais beijava Lucas e jurava sentir seu gosto, doce e quente como uma calda de chocolate, daquelas que se coloca sobre o sorvete e que se delicía aos pouquinhos.

Lucas estava quase terminando seu trabalho no jardim, enquanto ela se desesperava, seria preciso se declarar a ele, não poderia esperar mais. Passou, então, a imaginar uma maneira de fazer isto. Pronto, ao final do dia iria convidá-lo para o tal sorvete, o do sonho, tinha certeza que aquele beijo seria seu.

O fim do dia chegou e ela, perdida em seus pensamentos, nem notou o retorno de Júlia. Era chegada a hora de falar com Lucas e fazer o tal convite. Ao chegar ao jardim, porém, suas pernas começaram a tremer e lhe pareceu que o seu mundo desabava. Lá estavam Lucas e Júlia saboreando o beijo um do outro, sentindo o gosto que ela imaginava, seria só seu a partir daquele dia.

Aos poucos foi se afastando, devagar, para que sua presença não fosse percebida, entrou na casa, pegou sua bolsa e, como se estivesse em transe, foi embora, saboreando um gosto amargo, bem diferente do que sonhou, mas que, com certeza, não esqueceria jamais.

janeiro de 2007

segunda-feira, 22 de janeiro de 2007

MÍNIMAS CONFISSÕES

Almiro Zago

Sei, dói admitir, mas todos nós, assim como os produtos da indústria, podemos trazer defeitos de "fábrica". Todavia, brutal diferença nos desfavorece: não há troca ou devolução. Nem mesmo assistência técnica. Por isso, estigmas reais ou imaginários marcam o físico e a auto-estima a vida inteira.

Eu, para começar, admito pelo menos dois desses defeitos. Acreditem, nenhum complexo de vítima me move a falar deles. Bem ao contrário, me exponho para dizer alguma coisa tipo auto-ajuda a quem se constrange por causa de pequenos defeitos de origem, pois com os outros não se brinca. E, acima de tudo, garantir que é possível ultrapassar os sessenta anos com eles, ou apesar deles.

O meu primeiro defeito de "fábrica" soou o sinal quando vivia entre os três e os quatro anos, caroneiro de uma dor de cabeça, bem ao anoitecer de um domingo. Era um zumbido vago, disperso entre o grave e o agudo no ouvido esquerdo. Ao correr dos anos, assumiu-se como cigarra ao longe, desafinando ao ataque de gripes e resfriados. Vencido na competição sonora, é no silêncio que ele se revela. Aceito que alguém duvide, mas seja lá onde for que me encontre, nem importa o fuso horário, todas as noites ao descansar a cabeça no travesseiro lá vem a "hora de arte". Desse jeito ao invés de um concerto, sonata ou sinfonia, o som da minha vida é a cigarrinha que tem sobrevivido a todos os invernos, desmentindo antiga fábula. Agora, o meu lado marqueteiro acha que devo registrar esse "canto" em CD/DVD, revertendo em dinheiro esse azar do destino.

Já o outro defeito de procedência, bem ao contrário do primeiro, é visível e silencioso, embora sempre por mim ignorado. Só que, de trinta em trinta anos, vem alguém me lembrar que ele existe e sugerir um modo de camuflá-lo. Da primeira vez, tinha eu a idade de Cristo, quando em meio a uma conversa, um amigo me disse: "Por que tu não pede ao teu dentista pra fechar esse buraco no meio dos dentes debaixo?" Desconfiei que algum perdigoto o tivesse atingido, daí a sugestão direta, ainda que disfarçada de pergunta.

Mas, agora, passados trinta anos, outro amigo remexeu a ferida, cuidando, antes, de alisar o meu ego:

- Escuta, tu és um cara elegante, não ficas bem com essa abertura nos dentes. E passou-me o nome de um bom dentista que bem saberia fechá-la.

Fingi concordar, mas fiquei sem jeito por que ele trouxera à luz do dia algo que há muito habitava as sombras do esquecimento, a despeito do espelho e da escova dental. A gente só vê o que quer, não é mesmo?

Além do mais, por que preocupar-me com a porteirinha nos dentes, que, afinal, não chega a ser uma porteira de estância, se tenho outras urgências, como um implante de cabelos, por exemplo? ( Ih, estou entregando outro defeito.) Ninguém me fala da insidiosa calvície, devastando cada vez mais extensas áreas do meu couro cabeludo. E que, logo, me fará um deficiente capilar. Nem ilusões tenho porque em 30 anos, apenas dois amigos tenham-se animado a denunciar a porteirinha. Até imagino quantos teriam desejado falar e lhes faltou coragem... Ora, atravessei a adolescência sem tomar conhecimento dessa abertura e nunca soube que alguma guria, daquelas que não me davam bola, me tenha repelido por causa dela. Hoje, não tem graça fechá-la. E, depois, não seria ela o símbolo da minha hospitalidade?


segunda-feira, 15 de janeiro de 2007

SAPIÊNCIA

Isabel Cristina CCarvalho

O criador de nossa realidade é sábio.

Nos proporciona em sete dias algo semelhante ao que ele proporcionou para si mesmo: oportunidade de criação, realização e descanso e parece que isto em nossa realidade acontece entre um Natal e Um Ano Novo!

Nunca vivemos e externamos tantos momentos de reflexões, carinhos, emoções, sensibilidades, afetos, delicadezas e atitudes de amor em tão pouco tempo neste século. Mas também externarmos como nunca sentimentos nunca antes experimentados, como pedras sensíveis ou insensíveis, deslocadas ou desencontradas de tantos outros sentimentos já decodificados pela humanidade.

E nos perguntamos: que sentimento é este que nos cria uma situação embaraçosa por não sabermos se ele existe e se existe, como podemos classificar?

Parece o juízo final.

Seria esta semana, entre Natal e Ano Novo, o purgatório do catolicismo?

Uma semana compressora e distensora, depende dos merecimentos de cada um. E o criador é generoso, diplomático e humilde: apenas cada um saberá sobre cada mensagem que chegará ao seu coração, de alguma maneira pessoal e intransferível: por ajuda, por caridade, de navios, aviões (se os controladores se organizarem) pela internet, por telefonia móvel, e-mail, orkut, chat, messenger, icq, mirc (ops, existe ainda?) fax, skype, i-pod , e sei lá mais o que puder!
Nunca vivenciamos um Natal de tantas luzes "desapagadas" como neste Natal de 2006, embora tantas realizações validem o ano.

Muitas pessoas não conseguem explicar tanta neste momento, que por si só já merece todas as luzes, homenagens e carinhos de todos ...mas por um sentimento novo experimentado por nós brasileiros.

Mas porque somos um país jovem e nativo nas emoções , nas experiências do mundo e no entendimento da oportunidade que nos é concedida em sete dias que espero que possamos entender situações que nos rodeiam.

Espero que possamos ser como uma pombinha que nem tem muita estrada no horizonte mas que levanta a perninha num ato de decisão e coragem e segue em frente.

Que 2007 nos conduza a lugares nunca dantes navegados!

Ok! Zarpar!

Obs: Crônica contemporânea acoplada à mídia !

"Quando uma pomba não consegue mais voar pela poluição do ar ou pela da trajetória em nome do progresso ...esta pomba tem mais é que marchar!"


segunda-feira, 8 de janeiro de 2007

VAMBORA PRA 2007

Camila Canali Doval

2006 foi um ano como todos os outros: cheio de altos e baixos. É claro que alguns anos são mais marcantes que outros, com um e outro fato fora do comum para destacá-los, para torná-los positiva ou negativamente especiais em nossa existência. Mas, às vezes, de quando em quando, lá pelas tantas, acontece alguma coisa capaz de tornar um ano inesquecível. Eu sinto, sinceramente, que 2006 será um deles.

2006 já é o ano em que me formei. A festa, tudo bem, será em 2007, mas a luta, o empenho, a produção do Trabalho de Conclusão, a apresentação do Trabalho de Conclusão, a dor e a delícia do Trabalho de Conclusão, os estágios práticos, as notas finais, a sensação de já-era, etc etc etc... Foi tudinho em 2006.

2006 já é o ano em que participei da segunda oficina de crônicas com o Walter Galvani e conheci sabe quem? Os Mecânicos da Palavra. É, eles mesmos, esse grupinho surpreendente que aqui escreve e que formou, em 2006, uma amizade muito além das palavras, a qual certamente invadirá com tudo 2007.

Sobre 2007, nada sei. Claro, algumas previsões já se manifestaram, mas previsões são visões de outros olhos e os outros olhos nem sempre enxergam o que os meus olhos são capazes de ver. 2007 será um grande ano. Um ano difícil, um ano arriscado, um ano de passos lentos e definidores, um ano como nenhum outro jamais foi. 2007 será um ano e tanto. Senti de cara a vibração. Mas e daí? Um ano contundente sempre vale a pena. Vencer um ano difícil é sempre uma glória. Superar um desafio é sempre envaidecedor. E nada, absolutamente nada que o destino escreveu tem que obrigatoriamente ser a versão final da história. Nós que escrevemos, nós que criamos, nós que somos tudo o que queremos ser, nós que andamos livremente pela vida - pois a dominamos na ponta do lápis - sabemos que o destino dá as cartas, mas que as regras são nossas e de nada adianta sabotar a sorte de quem sabe jogar.

2006, portanto, já é um ano inesquecível, pelo menos para este espaço virtual, pelo menos para esse grupo completamente real. Os Mecânicos seguem com as mãos na graxa, apertando parafusos com sua prosa, reparando amassões com sua poesia, amaciando os motores com suas ferramentas mágicas: as palavras. E quem ainda não conhece nosso trabalho, por favor, dê uma chegada. Traga seu carro, mesmo que seja um calhambeque. Garantimos o melhor serviço da vizinhança. Queremos motores tinindo neste início de ano. Latarias brilhantes. Estofamentos "um brinco". Desempenho de zero quilômetro. Estou pagando para ver as máquinas que ainda sairão desta oficina...

E vambora para 2007, meus amigos queridos, porque um novo ano é só um novo contar de dias e o que é bom nesta vida não vê a passagem, vê apenas a permanência.


quarta-feira, 3 de janeiro de 2007


UM ROMANCE COMPLICADO

Américo Conte

A mosca e o mosquito
se apaixonaram no primeiro olhar.
Depois de um namoro conturbado
ainda se amavam e resolveram casar.

Com gostos tão diferentes
muitas concessões tiveram de fazer
e numa malcheirosa lata de lixo
com sua mosquinha, o mosquito foi viver.

Cada um bem lá no seu íntimo
achava que o outro, iria modificar.
Tudo era apenas uma questão de tempo
com jeito, amor e carinho, muita paciência e esperar.

Não sei se foi o desgaste
da convivência mútua, que se acirrou.
O fato foi que as diferenças
cada vez mais fortes, lhes atropelou.

O mosquito só reclamava, do diversificado cardápio
com que a mosca tentava lhe agradar.
E ela não se conformava, com o velho hábito
de beber sangue, que ele não se esforçava em largar.

Durante o dia, sempre muito acesa
nos chiqueiros e potreiros, ela queria passear.
Ele muito boêmio, entre serenatas, desaparecia na noite,
e só de manhãzinha , cheirando a sangue, lembrava de voltar.

Então, não houve mais jeito,
e o relacionamento deles chegou ao fim.
E o mosquito e a mosca muito magoados
culparam um ao outro, por tudo terminar assim.


DEVANEIOS DE UM SEDENTÁRIO

Américo Conte

Quando assisto a algum filme ou leio um livro em que me encanto com a história e o protagonista, fico a meditar por muito tempo sobre que bom seria se minha vida fosse assim: emocionante, dinâmica, sensível e cheia de predicados com os quais as pessoas pudessem se encantar, se entusiasmar, sorrir e chorar, a se identificar e solidarizar comigo nos tramites destes empreendimentos. Entretanto, depois abstraio-me na idéia de que talvez não seria bom desperdiçar toda uma existência em apenas um contexto ou uma história simplesmente, por mais bela e singela que fosse. Não me contentaria em gastar minha vivência em somente um enredo. Gostaria que ela fosse como vários livros e muitos filmes, e que minha participação tivesse tantas aventuras, romances e deslumbres com uma fartura diversificada de situações que colocassem em êxtase todo e qualquer indivíduo que tivesse contato ou tomasse conhecimento destas peripécias, mesmo que apenas de partes destes momentos do meu cotidiano.

Todavia estremeço a minha consciência como que despertada por um balde de água fria a me recriminar pela petulância e pela ganância de pretender tantos recheios e realizações em apenas uma vida e em um só ser. E continuo minha autocrítica pelo inconformismo de que uma só história maravilhosa não me bastaria. Porém, meus pensamentos seguem voando no egocentrismo e na frustração de não poder arrebatar todas as formas de proezas e emoções em um só enlevo, onde ridiculamente enfadado prolongo minhas divagações.

Assim sendo, minha vida escoa solta e sem sentido, carregada de temores, sem a mínima eloqüência de apenas uma medíocre história duvidosa que costumamos classificar como de terceira ou quinta categoria.

dezembro de 2006

terça-feira, 26 de dezembro de 2006

MENSAGENS DOS MECÂNICOS PARA AS FESTAS DE FIM DE ANO

Américo Conte

Jesus, ainda bebê
sabia que devia ser assim:
Sermos ternos, meigos e fofos
como as belas ovelhinhas.
Amáveis a qualquer hora,
onde pudéssemos nos recostar
em uma macia acolhida,
livres para sonhar.
Uma recíproca confiança
sem medo de se entregar,
e sem transferir para depois
os momentos de sorrir e festejar.

Que o brilho da felicidade
não esteja só no Natal.
Vamos colher este fruto, o ano todo
e brindá-lo em taça de cristal.


PEQUENA CRÔNICA NATALINA

Almiro Zago

Opa, já está aí o Natal. E o Ano-Novo vem com tudo. Agora, por favor, alguém saberia me dizer onde foram parar os dias, as semanas, os meses deste 2006? Mas das coisas boas deste ano eu sei, e, também, daquelas que devem esfumar-se nas brumas do esquecimento. Fico com as primeiras. E delas, seguindo a linha otimista, farei degraus para alcançar momentos de alegria, de serenidade e bem-querer.

E já que é Natal, proponho contemplar o olhar do Jesus Menino - aquele olhar entranhado no imaginário de cada um. E dele peguemos um pouco de ternura e um fio de luz para levarmos no coração hoje e por toda a vida. Se acaso outro venha a ser o olhar preferido de alguém, também vale, desde que irradie luz, amor e paz.

Além disso, como não falar de festas? Aqui, entretanto, eu confesso que depois de muita estrada, festa para mim é estar em companhia das pessoas que amo e daquelas que me querem bem. Todo o mais é gratificação.
Quanto ao 2007, faço o firme propósito de, ao menos, tentar reter os minutos, as horas, dias e meses para conhecer-lhes o paradeiro...

Bem, e a você que chegou até aqui, desejo Boas Festas de Natal e Ano-Novo.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

novembro 2006

quinta-feira, 30 de novembro de 2006

ASSÉDIO EM SÃO PAULO

Almiro Zago

Se há uma coisa que decididamente não sou é assanhado. Mesmo porque a cara não ajuda, como sinto da imagem que muitos fazem de mim. Ainda não avaliei se isso que pensam a meu respeito é algo de bom, que aproxima, ou se funciona contra os meus desejos de aceitação no meio social. Mas já sei que, se nos classificados procurarem alguém de ar circunspeto, respeitável, posso me apresentar, certo de aprovação. Já não me agrada pensar que se "a cara não ajuda" é por causa da sisudez, - essa palavra antipática bem ao jeito da expressão facial que representa.

Isso dito, confesso que há tempos uma dúvida me persegue: se fui visto com cara de circunspeto, de sisudo, ou outra não catalogada num episódio de assédio que se deu comigo em de São Paulo. Claro, a resposta seria muito útil, pois com ela poderia orientar-me a respeito do tipo de ajuda a procurar: analista, "personal training", cirurgião plástico...

Mas o fato me aconteceu ainda pelo começo do ano. Foi numa das últimas manhãs de janeiro, em elevador de edifício residencial. Pois lá, no décimo terceiro andar, entrei na cabina como único passageiro. Premi a tecla "desce" e, obediente, o elevador se pôs em movimento.

Dois ou três andares abaixo, deu-se a única escala. Então, sorridente, com certa elegância, entrou uma mulher, falsa loura, alta, perto de cinqüenta anos. Cumprimentou-me com explícito entusiasmo e largo sorriso. Logo, colocou-se de costas para a porta, indisfarçavelmente de frente para mim. E me olhava. Devo ou não devo corresponder, eis a questão. Instantaneamente, o juízo entrou em cena: avô estreante, bom pai, no dizer da mãe de meus filhos, muitos anos de casamento, deveria, por certo, observar a discrição. Nada difícil.

E, todavia, a fera estava ali, parecia pronta para saltar sobre a presa. Eu, indefeso e intrigado. Afinal, o que essa assanhada vira em mim tão de repente?

Ela não perdeu tempo, num segundo, foi lançando o surpreendente pretexto de conversa:

- Foi você que trouxe esse cheirinho bom pra cá?

Com certo espanto, num instante, achei que pudesse ser alguma ironia, pensando que, involuntariamente, eu tivesse liberado algum mau odor. Essa idéia ficou superada ao perceber que, de fato, havia um cheiro bom no elevador. Aí, com a secura possível, deixei sair a resposta:

- Não, não fui eu.

Longe de desconfiar de que não estava agradando, de sorriso incontido, a mulher foi em frente:

- Ah!, mas que bom seria se a gente pudesse levar esse agradável perfume com a gente...

- É.

E o elevador demorando a chegar.

Finalmente, o painel indicou o térreo.

Cerrando a expressão, um tanto desapontada, a atrevida virou-se para a saída, e despediu-se com um esperançado tom afetuoso:

- Até logo, querido!

E foi-se rumo à portaria, não tão devagar que pudesse dar a entender que estava dando maior bandeira ainda, nem tão depressa que não pudesse ser alcançada. Só me faltava que fosse.


sexta-feira, 24 de novembro de 2006

WEBLOG E JORNALISMO

Marco Antonio Poglia

Um dos grandes avanços que me foi proporcionado ao fazer parte desse blog foi tomar conhecimento da existência desta ferramenta. Utilizada de mil e uma maneiras e com diversos objetivos, a práxis jornalística é que me desperta maior interesse. Ainda não me acostumei com a idéia de trocar o papel pela tela, mas a internet tornou possível que você levante de manhã - faça o chimarrão - e imprima seu próprio jornal. E que ao abri-lo encontre notícias, fatos concretos, posições definidas.

Fala-se no meio jornalístico que a notícia ocorre quando o homem morde o cão, porém é disseminada a falsa recíproca que recheia a imprensa brasileira de homens já estraçalhados por dentes caninos. E no Brasil, onde as grandes mídias nativas estão concentradas nas mãos de algumas famílias, o que ocorre é a editorialização das notícias sob o véu da imparcialidade. Esta última utilizada de escudo para a defesa de interesses próprios e dos seus anunciantes, ficando a posição do jornalista muitas vezes represada pelo patrão que "fiscaliza" o poder do qual faz parte. Constituem a "imprensa marrom" brasileira.

Não fosse o jornalismo tratado dessa maneira grotesca, o assunto não me despertaria maior interesse. Mas não me atrai a idéia de ser complacente com esta banalização que se tornaram os noticiários brasileiros. Àquele que se pretende informado, é preciso sair à cata de notícias, separando o joio do trigo. Aí é que entram os weblogs.

Hoje em dia, através desses blogs, juntamente com outros sites de jornalismo e opinião, temos a oportunidade de acessar notícias (literalmente) que não veiculam nos jornais. E é possível acompanhar os pontos de vista de grandes jornalistas, entre outros profissionais, que muitas vezes não tem espaço garantido nos meios de comunicação a que temos acesso. Estão disponíveis na internet personalidades como Mino Carta, Paulo Henrique Amorim, Walter Galvani, Luis Nassif, Alberto Dines e o Observatório da Imprensa, Emir Sader, Boaventura de Sousa Santos, e tantos outros.

No quesito jornalismo, sou discípulo de Mino Carta. O jornalismo de qualidade baseia-se em três princípios: fidelidade canina à verdade factual, exercício desabrido do espírito crítico e fiscalização diuturna do poder, onde quer que se manifeste. Uma vez respeitados esses três pilares, tomar uma posição clara e definida em relação ao fato noticiado não constitui desvio de ética. É antes disso sua função.


terça-feira, 21 de novembro de 2006


ALIENADA ESTUPEFAÇÃO

Américo Conte

Estava absorvido escrevendo um conto, considerando-me o máximo pela criatividade e desenvoltura com que fluía a estória.

O orgulho apoderava-se de mim e uma narcótica satisfação inflamava meu devaneio, quando um miado despertou-me de meu torpente estado.

Acorri à janela e vi Zenaide, nossa gata amarela de estimação, estirada na calçada amamentando seus dois filhotes, tão belos e fofos como dois novelos de lã.

Ergui o olhar e um Bem-te-vi pousado na Mangueira em frente, me observava como se estivesse muito surpreso a estranhar a minha cara apalermada e a indagar para si mesmo sobre que ser mais estrambólico seria aquele extasiado com um fato tão corriqueiro.

Tomei então consciência do ridículo da situação em que me engolfara e percebi que a beleza e a vida se manifestam melhor e mais pujantes em um simples miado do que em um conto ou qualquer outro artifício forjado pela mente humana.


* JANEIRO DE 89 *


quinta-feira, 16 de novembro de 2006

PRATA

Isabel CCarvalho

Eu tinha horror a cachorros. Eu tinha pavor de cachorros.
Aliás, eu tinha horror e pavor de cachorros e donos de cachorros.
Juntos!

Eu nem sabia quem era pior: o dono ou o cachorro.
O cachorro me pulando, me arranhando, me lambendo, me rasgando, me rosnando, me enfrentado ou o dono do cachorro, meu amigo, me beijando, me abraçando e afirmando:
- o "coitadinho" não faz nada, é um anjo.
Anjo era eu a respeitar e não matar o próximo: o tal amigo.
E o inimigo: o tal cachorro.
Juntos!

Até que, um dia, fui obrigada pela família a aceitar um cachorro em minha vida.
Meu lado querubim de rebeldia, vingança, teimosia, foi buscar a irmã caçula do cachorro. Para viverem fraternalmente. Juntos!

Desastre total: incompatibilidade fraterna.
O cão másculo foi despachado e nem olhou para trás ao se despedir da
família e menos ainda da irmã canina.
E a pequenina ficou para um "test drive" de adaptação,
sujeita à doação irreversível em caso de má "cãoduta"!

E o milagre da superação aconteceu .
A cachorrinha me conquistou: pulando, arranhando, lambendo, me rasgando, me rosnando, me enfrentado...me encantando.
Virou "Prata", porque "Ouro" já existia: minha filha.
E conquistou a todos.
Juntos!

A Prata é linda, carinhosa, generosa, amorosa,
esperta, inteligente, manipuladora e "Oh Céus", onerosa!

Só temos um problema eu e Prata: temos horror a cachorros sem guia...
Aliás, pavor e horror a donos e cachorros sem guias...
Ou melhor: cachorros e donos sem guias e sem rumos.
Juntos!

Aprendi a lição da superação mas não perdi o bom senso quando recebo amigos.
A Prata já está adestrada. Só pula, arranha, lambe, rasga, rosna, enfrenta,
se tiver consentimento.
E mais uma vez tive a certeza de que podemos nos superar sempre, "pra cachorro" ...
Juntos!


quarta-feira, 8 de novembro de 2006

O GRITO DA ARTE

Camila Doval

O que é isso que acontece no interior das pessoas? O que é isso que nos conduz, move, impele a viver feito loucos, conscientes da finitude de ser; inconscientes da ilimitude do ser? Dentro de nós, um labirinto de portas. Portas abertas e portas fechadas. Portas entreabertas e portas mal fechadas. Ao redor, o caos organizado do mundo, onde tudo se explica, tudo se encadeia, tudo se enquadra no conceito de ação-reação. Pois há ações, dentro de nós, que não correspondem a nada. Que se perdem, prendem, fundem em nossas entranhas.

O que desprende um sentimento incrustado? O que liberta um trauma arraigado? O que cura as feridas da alma? Um livro, um filme, uma música, uma pintura muda e palpável, ali, à frente de nossos olhos, expondo concretamente... Nós.

A arte é um grito. A arte alivia o ser. E não que seja seu objetivo. É, antes, sua conseqüência. Ao "fazer" arte, caçamos em nosso labirinto aquela coisa amorfa que não sabemos definir, que muitas vezes machuca, corrói, dói e arremessamos para fora. Não para nos livrarmos dela. Não, jamais nos livraremos dela. O que tentamos, em desespero, é enxergá-la cara a cara, ao menos uma vez. Só pra saber como ela é. Só para poder possuí-la novamente, agora com o aval do mundo.

A arte não ultrapassa o homem; o homem resiste na arte. Pois nada mais eterno que a dor solidificada.


segunda-feira, 6 de novembro de 2006

OS SINOS DE NOTRE-DAME

Almiro Zago


Tenho a impressão, às vezes, que as paisagens mais famosas e conhecidas mundo afora tornaram-se comuns. E isso por causa da constante presença delas em imagens na televisão, em filmes e nas mais diferentes publicações. Parece que os lugares retratados em cartões postais, inclusive os mais cobiçados, já seriam nossos velhos conhecidos.

E, então, para que ir até eles? Primeiro, poderia ser pelos mesmos motivos que vamos aos lugares de que gostamos em nossa cidade, em nosso pequeno mundo. Depois, vem o desejo de conhecer de perto outros modos de vida, de usufruir bens culturais não disponíveis onde vivemos.

Ah, mas fascinante mesmo é a gente sentir-se na paisagem dos postais, perceber a vibração de tudo o que está à volta: os sons peculiares, o ir-e-vir de pessoas falando diferentes idiomas, a arquitetura dos prédios, as ruas e avenidas.

Bem, se o cartão postal é de Paris... Vive-se quase em estado de graça num ambiente que tem história e cultura seculares. E uma cidade que funciona, num país onde a educação transparece a todo momento.

Mas, hoje, diria porque o destino assim quis, estou outra vez na Cidade Luz. E, agora, aqui do alto da Torre Eiffel contemplo um dos mais lindos panoramas urbanos do Planeta. Junto a mim, invisível aos demais, um guri de 14 anos arregala os olhos. Aquele, eu lhe aponto, é o Arco do Triunfo de l'Étoile. Lembras das ilustrações do livro de francês e dos comentários entusiasmados da professora? Aquela moça fina, recém chegada de um curso em Paris? Sim, Paris, naquele tempo, para ti, tão distante quanto a Lua.

Embevecido, o guri a tudo observa ao alcance da vista, e com alegria incontida vai identificando a Praça da Concórdia, o Museu do Louvre, a branca Igreja do Sacré Coeur, a Avenida de Champs Elysée, o rio Seine e seus "bateaux", o Pantheon, a Catedral de Notre-Dame... Lá se foram quase 50 anos. E aquele guri, trabalhador e estudante de curso noturno, ainda vive no coração do sexagenário de hoje. E lhe passa emoção; mantém acesa a chama da esperança e reaviva antigas lembranças.

Agora, já estou pronto para descer das nuvens, ou melhor, da Torre e pelo elevador. Reanimado para em boa companhia curtir esta cidade, suas calçadas, seus cafés; admirar as grandes obras de arte do Louvre e do Museu d'Orsay. Visitar Giverny para conhecer a casa e os jardins de Claude Monet. E, de volta, chegar pelas cinco da tarde em tempo de ouvir o repicar dos sinos de Notre-Dame, e deslumbrar-me com os coloridos vitrais da antiga e bela Catedral à luz do entardecer.

(De anotações de 26.09.06)

outubro 2006

quinta-feira, 26 de outubro de 2006

O AVISO

Karen Scopel

Naquela noite, cheguei no horário de sempre e pude ver, já do portão, um aviso fixado na porta de entrada do edifício. O que seria desta vez? Alguém teria esquecido a porta destrancada ou feito barulho até tarde da noite?

Para meu espanto, não se tratava de nada disso. Era um aviso de utilidade pública para as mulheres, para todas as moradoras e quantas mais elas conseguissem avisar. Um tarado estava à solta no bairro e atacando em plena luz do dia, tendo sido, uma das vítimas, a autora do recado.

Em um primeiro momento fiquei confusa, precisei ler o texto mais de uma vez, pois havia sido escrito sem o menor cuidado com as palavras, como se elas fossem um punhado de cartas embaralhadas. Depois, não pude conter o riso ao imaginar a cena, aquela mulher sendo perseguida pelas ruas de nosso bairro, extremamente movimentadas no horário em que o tal ataque quase ocorreu, por que, pelo que li, houve apenas uma perseguição por parte do suposto agressor.

O pensamento que tive, após imaginar tal cena, foi de quem teria coragem de perseguir esta mulher com fins sexuais, ela não chamava a atenção pela beleza de suas formas, muito menos tinha um quê de simpatia estampado em seu rosto, pelo contrário, seu olhar é duro e sua maneira de se dirigir às pessoas, grosseiro. Mas, o tarado, com certeza, não fazia idéia de nada disso.

Havia pretensão e coragem em suas palavras ao afirmar que um homem corria atrás dela para seduzi-la ou coisa pior. Talvez fosse apenas uma fantasia e o pobre rapaz, que andava tão próximo, na mesma calçada, sequer havia percebido sua presença. O aviso, assim, à mostra na entrada do prédio parecia mais um pedido de socorro do que um alerta para as outras mulheres. Acho que ele foi dirigido a uma única pessoa que, quem sabe não a veja mais como ela gostaria de ser vista, não a perceba mais como uma mulher com suas fantasias e desejos.

Afinal, ela não parece ser do tipo que faz declarações de amor, que adoça a voz e é capaz de pedir um beijo. Suas demonstrações de afeto são comedidas, atrapalhando-se no momento de um abraço sincero, confundindo gestos de amor com sinais de fraqueza.

Grande engano comete esta mulher, no amor não há fracos ou fortes, somente amantes que têm força juntos e que sós, enfraquecem.

São tortos os caminhos, muitas vezes para chegar a um lugar, damos voltas e voltas, dificultando um percurso que seria simples se tivesse sido seguido em linha reta. Este aviso foi um caminho tortuoso para chegar como uma flecha e atingir um coração. Não sei se ela acertou o alvo ou o destruiu para sempre, fica difícil saber, aparentemente, nada mudou, seu olhar continua duro, seu caminhar decidido e suas palavras tristes.

Pobre mulher. Pobre em palavras, por ter escrito de forma tão confusa sua carta de amor. Pobre em sentimentos por me fazer sentir somente pena, pena por ela ser assim.


segunda-feira, 23 de outubro de 2006

FANTASMASIAS DE MARIA

Américo Conte

Maria pensava em ser cantora,
não tinha voz.
Quem sabe então, ser atriz?
Faltava o Xis.
Pintora? Nem de abstrato.
Escritora? Melhor lavar prato.
Para ser santa
tem que ser anta.
Oficial das forças armadas?
Insensível a patriotadas.
Médica, Pedagoga, Dentista?
Nem jeito para repentista.
Atleta, Política, uma Altruista?
Acabou como balconista.
Para ser alguma coisa
é tanta chatice e exigências,
Ela queria só desfrutar da vida
sem ninguém a torrar sua paciência.
Achou melhor fazer um filho
e transferir suas pendências.
Seria tudo uma maravilha
se não fosse outra armadilha.
Acabou todo o seu sossego
sem ter tempo ao arremedo
Passou anos assim envolvida
com merda, mijo e comida.
Quando acabou a infância
pensou respirar tranqüilidade,
vieram os problemas da adolescência
repletos de indecências.
O que um dia ela sonhou
os filhos não iriam retribuir,
não foi nada do esperado
o mundo a enganou um bocado.
Mas quando surgiram os netos
voltaram novas as esperanças,
Os ideais que por ela, seus pais e filhos passaram ilesos,
certamente eles manteriam acesos.
Maria sofria dessa ansiedade
de se sobrepor na sociedade.
Os netos riam de sua conduta,
A velha estava era caduca.


sexta-feira, 13 de outubro de 2006

Mais uma da série FANTASMAS...

Um Fantasma em Carne e Osso

Américo Conte*

Vários anos após a minha formatura, quando voltei a passeio ao prédio da faculdade, onde por dez semestres consecutivos, estive engajado no curso de Comunicação Visual, pensando, quem sabe, encontrar algum ex-colega que por lá se mantivesse dando seqüência nas disciplinas atrasadas (pois, alguns faziam pouquíssimas cadeiras por períodos, ou trancavam suas matrículas pelas mais diversas razões) ou então, talvez avistá-los empenhados em um novo curso.

Enfim, acho que gostaria até de simplesmente rever o local por onde passara cinco longos anos de minha vida, atribulado a enfrentar vários sufocos, em que por vezes todo estudante se exaspera.

Neste passeio, creio que obtive a exata sensação de como um fantasma se sentiria, revisitando os lugares por onde viveu.

A principio percebi que as árvores que circundavam o prédio, estavam bem mais crescidas. Este porém, continuava o mesmo. Com as mesmas partes de paredes descascadas e encardidas, com aquela eterna falta de verbas para pintura e restauração. Os vasos de flores no saguão, as escrivaninhas nas salas de aula e as estátuas e os quadros nos corredores, só não continuavam os mesmos, como permaneciam nos mesmos lugares.

Os elevadores e demais dependências regurgitavam de rostos desconhecidos, fazendo um alarido ensurdecedor, com debates e contestações sobre disciplinas, cujas algumas eu já tivera os meus percalços, e que agora dissimulava com risinhos, as gargalhadas sarcásticas que por dentro me divertiam.

Percebia semblantes novos e curiosos que vasculhavam tudo ao redor, com uma excitação de calouros. Caminhava e passava por aquelas pessoas, sem encontrar nenhuma cara conhecida. Também não encontrei nenhum ex-professor. Muitos, aliás, já estavam por se aposentar. O mesmo acontecia com as senhoras da secretaria, onde não reconheci ninguém. Ninguém parecia me perceber, e jamais imaginavam que eu, por cinco anos, estivera nestas mesmas salas de aulas e oficinas, tão empenhado, tanto como eles agora pareciam estar. Enfrentando essas mesmas similaridades de problemas e condições.

Esbarrava-me e cruzava com indivíduos, cujas feições iam bem além de simplesmente me ignorar. Pois, para eles eu não existia.
Observava-os a tomar posse e disputar cadeiras, escrivaninhas e postos que outrora me pertenceram, e que meus colegas respeitavam. Tudo agora me surgia muito cômico e inócuo.

Percorri durante algum tempo, várias dependências, sem absolutamente trocar uma única palavra com alguém. Por incrível que pareça, estava completamente desprovido de saudosismos. Apenas, deveras curioso com a nova situação em que se me apresentava.

Numa troca de período, em que os corredores abarrotados, resplandecente de olhares afoitos a dirigirem-se a outras salas, repletos de expectativas; tive imensa vontade de interferir e acabar com aqueles debates e confrarias, impondo a minha presença, aos gritos, de eu estou aqui! Eu também sou ou fui um de vocês!
Tenho a certeza de que todos ficariam estáticos e horrorizados. Não como a observar um louco ( que isso lá não passa de um adjetivo). Mas, sim, a apreciar um verdadeiro fantasma que acabava de se personificar.

*Américo Conte por ele mesmo:Sou Américo Conte, nascido sob o Signo de Touro, com Ascendente em Áries e Lua em Capricórnio, amante em primeiro grau das Artes nas sua mais diversas manifestações, como a pintura, desenho, cinema, teatro, poesia, literatura e a música em seus mais diversos estilos e ritmos. Amo os animais, de preferência os mamíferos e as aves. As plantas também estão em minhas mais altas considerações. E, as pessoas, é lógico que não gozam do mesmo prestígio, a não ser aquelas humanizadas e de boa índole e caráter. As opressoras, mal intencionadas, dissimuladas e intransigentes, eu quero é distância. Coloco aqui aspectos suficientes para vocês terem um bom conhecimento a meu respeito, bem mais do que aqueles registros sociais que nada elucidam. Sem mais desejo sucesso e felicidades a todos que de uma certa forma se identificarem comigo.


terça-feira, 10 de outubro de 2006

ENCONTRO

Foi "tri" legal o encontro dos Mecânicos na última quinta-feira. Fomos ao Studio Clio e assistimos Ruy Carlos Ostermann entrevistar Sérgio Faraco, escritor gaúcho e um dos grandes contistas brasileiros, que provocou risos na platéia ao dizer que faz rascunhos até de seus mails. Ele nos encantou principalmente com comentários acerca de seu livro, Lágrimas na chuva, onde relata sua experiência na ex-URSS e sua prisão, quando voltou ao Brasil, durante a ditadura.

Estava lá também o patrono da próxima Feira do Livro de Porto Alegre, Alcy Cheuiche, que contribuiu com seu depoimento sobre os fatos narrados por Faraco.

A canja musical foi da maior qualidade. A gaúcha Adriana Deffenti, acompanhada de Angelo Primon e Marcelo Corsetti, fechou a noite em grande estilo.


terça-feira, 3 de outubro de 2006

CAÇA-FANTASMAS, EU?

*Almiro Zago, no momento, em Paris.

Um dia desses, espiando a programação de cinemas e televisões, vi que histórias em volta de fantasmas e aparições, casas ou castelos mal-assombrados ainda rendem assunto para muitos filmes. E, mais que isso, empolgam espectadores em todo o mundo. Bem, para mim, um desses temas nem deu tanto. Apenas esta crônica, quem sabe, não menos fascinante, embora nem seja recente.

Mas, duvido, e faço pouco, que alguém já se tenha defrontado com um fantasma como aquele que, certa vez, me apareceu.

Vi coisas semelhantes em filmes, ouvi intrigantes casos, mas nada se iguala ao meu contato pessoal e imediato com perturbadora criatura. Como se sabe, há sempre alguém vendo fantasmas por aí, como também, há lugares mais propícios para o seu aparecimento. As áreas de quartéis, por exemplo, pelo menos ao tempo em que eu fiz o serviço militar. Sempre havia um soldado, um cabo ou até um sargento, contando um caso e apontando um ponto de aparecimento da alma de um que se matou em serviço. A bem da verdade, nos meus turnos de ronda, noite adentro, nunca vi fantasma de soldado morto, nos lugares indicados. Mas em compensação, vi um outro, e por pouco não lhe passei fogo. Ainda que viva cento e vinte anos, nunca esquecerei tão arrepiante episódio.

Pois bem, foi da última vez que dei serviço de ronda que tudo aconteceu. No meu período, devia vigiar o paiol de munições e algumas instalações de marcenaria e granja, ligados por uma alameda, costeando uma suave colina. Percorria esse caminho, de uma centena de metros, em monótonas idas e vindas. Ao alto, no extremo oposto ao paiol, à direita de quem chegasse, havia o barracão da marcenaria com uma lâmpada, perto do beiral, iluminando o ambiente próximo.

E lá pelas três horas, madrugada fria, de mosquetão a tiracolo, atento a tudo, aproximei-me da marcenaria. Em dado momento, olhando para frente, vi, a uns trinta metros de distância, um homem de botas altas, vestindo casacão escuro, levando à cabeça um chapéu no mesmo tom. Encostado a um chiqueiro, esgueirava-se como quem não quisesse ser visto. Sem pestanejar, apontei e engatilhei a arma, e fui gritando: alto lá, não te mexe, senão atiro! E fui seguindo com os olhos fixos na figura. Para meu espanto, de repente, a imagem desvaneceu-se. Mas era um homem, podia jurar, repetia para mim mesmo entre perplexo e assustado.

Procurei conferir tudo à volta, nada via de diferente, tudo quieto. Ainda temeroso, comecei o caminho de volta, mas em certo instante, voltei-me para rever o lugar da aparição. Fiquei lívido. Não é que a figura lá estava e na mesma posição? Tornei a apontar e a engatilhar o mosquetão, e, engrossando a voz para simular coragem, renovei a advertência. Fui avançando e, depois de uns dez passos, a aparição sumiu outra vez.

Bem, a coisa não podia ficar assim. Voltei a fazer o mesmo roteiro, a passos mais lentos, com a calma possível. Aí, pude perceber que a figura reaparecia e suavemente sumia, como que a zombar de mim. Uma explicação deveria existir. Comecei, então, a desfazer o mistério pela observação objetiva, começando por um chiqueiro desativado, pintado de branco. Sua portinhola, completamente aberta, observei, encostava na parede, mostrando sua face de dentro, suja e escura. Era essa parte que tomava forma de casacão. Coincidentemente, abaixo da portinhola, havia um pilar, delineando canos de botas. E, ao alto, uma coluneta com uma trave fazia, no claro-escuro do lugar, o desenho do contorno da cabeça com chapéu. Esses elementos combinados resultavam, a certa distância, na impressionante imagem do homem de botas, casacão e chapéu. Surgia e desaparecia na penumbra, de acordo com o ponto em que se encontrasse o observador. E lá se foi a figura! Hoje, porém, sinto-me um tanto arrependido de ter esclarecido o episódio, pois, sem faltar com a verdade, não posso contar a ninguém ter visto um fantasma.

*Almiro Zago por Almiro Zago: Sou, apenas, um caminhante.
Pedi pouso aos "Mecânicos da Palavra"
só para me encantar com os novos caminheiros
que vieram se agregando ao longo da estrada.



domingo, 1 de outubro de 2006

Por que eu vou de Lula

Marco Antonio Poglia*

Gostaria de ter estreado no blog falando sobre o aprendizado e a satisfação proporcionados pela oficina, mas acabei exercitando-os de largada. Às vezes o assunto se impõe. Afinal, esse foi um dos aprendizados. E no caso agora, quem rouba a cena é a política. Também aprendi que não falar de política também pode ser falar de política. Então, paciência, não temos como fugir.

Têm-se utilizado muito do moralismo - oportunista, diga-se de passagem - para tentar impedir a reeleição do presidente Lula, pelo menos em primeiro turno. A última foi na tal compra do dossiê, que todo o globo quer saber como foi comprado, sem se interessar pelo que continha. Ora, punição dos responsáveis a parte (e em vala comum!), é preciso levar em conta em que condições atiram-se as pedras.

O argumento de que Lula deve deixar o planalto por alimentar a corrupção no Brasil, juntamente com o de que Lula somente aprofundou as práticas tucanas, pertence à mesma categoria que a defesa do geocentrismo, onde todos podem ver por si mesmos que o sol e as estrelas se movem e que a Terra permanece parada. Às vezes é preciso buscar a visão do alto da colina. Copérnico já enfrentava essas dificuldades.

Em entrevista concedida no ano de 2000, o economista Celso Furtado já profetizava a ausência de margens de manobra na hipótese de uma eventual vitória de um governo de esquerda no Brasil. Isso devido à política econômica apoiada na venda das estatais brasileiras realizada nos anos FHC, e que se pretendia retomada por Geraldo Alckmin numa eventual eleição, hipótese que parece já descartada pelo povo brasileiro.

E há, sim, um preconceito social existente em relação à figura do presidente Lula, oriundo de um "senso comum" da supremacia da cultura diplomada. Um preconceito de classe em relação a um operário que chegou ao poder de um país historicamente dominado por uma elite que hoje se sente ameaçada devido ao início de um processo de transferência de renda, que já chega tarde num país que ocupa a posição de vice-campeão do mundo no quesito concentração de renda. Como bem colocou Luís Fernando Veríssimo em sua coluna, trata-se de um processo "falho e insuficiente, mas inédito no país".

Ainda temos a taxa de juros mais alta do planeta e destinamos muitos bilhões de reais por ano para os nossos credores, na maioria bancos, por causa disso. E muitos outros bilhões (inclusive os que deveriam estar na previdência - alguém tem visto falar em previdência?) são utilizados para compor o chamado "superávit primário", que este governo vem mantendo em estrondosos 4,5% do PIB. Aliás, este ponto talvez seja o principal viés do governo Lula, mas passa isento de crítica pela grande mídia. Por outro lado, deve-se levar em conta que estamos com a menor taxa de juros em mais de trinta anos e que o candidato tucano pretende quase dobrar o superávit primário com a política liberal de "déficit nominal zero" do doutor Delfim Neto.

Embora tenha ficado devendo, não podemos esquecer que não elegemos um "Sassá Mutema", e sim um presidente para administrar por quatro anos um país completamente amarrado às práticas do neoliberalismo da década de noventa. Ou se esperava o quê de um presidente que já se elegeu coligado com o PL e comprometido com o FMI, a revolução comunista?

*Marco Antonio por Marco Antonio: Eu sou apenas um rapaz latino-americano sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo do interior. Tenho ouvido muitos discos, conversado com pessoas, caminhado meu caminho...