quinta-feira, 16 de abril de 2015

Assaltante alado

Almiro Zago

O caso só não ganhou manchetes, tal qual a corrupção, a violência, as invasões de apartamentos do “Minha casa, minha vida” pela elementar razão: a mídia desconhece o passaredo e vice-versa.

Foi assim:

Na casinha de joão-de-barro pousada num ressalto de parede do prédio vizinho, eram vistas, por seguidos dias, suspeitosas entradas e saídas de pardais. Já ia formando mau juízo de dona joana, embora ela nunca aparecesse, quando me veio à lembrança que os companheiros furnarius rufus joão e joana , de intensa labuta na construção de sua morada, terminam por abandoná-la tão logo seus filhotes ganham os ares.

Intuindo isso, imagino, certo pardal e sua pardoca escolheram para preparar seu ninho exatamente a porta da ex-casa dos barreiros. Ao redor, a toda hora, voava e pousava pequeno bando, por certo de amigos do novo par, sempre alertas para conter frequentes investidas de um atrevido bem-te-vi.

Na manhã da última escaramuça entre essas aves, e eu vi, os passarinhos da guarda piavam desesperadamente, esvoaçando em volta do agressor, também conhecido por pitangus sulphuratus, que bateu asas em astuciosa retirada.

Ao sol brilhoso, passados uns quantos minutos, ouviu-se outra zoeira da pardalada. Porém, dessa vez, mal pude ver o bem-te-vi em voo ascendente, levando no bico o ninho do casal de pardais. Que malvadeza*!

O caso só não ganhou manchetes, tal qual a corrupção, a violência, as invasões de apartamentos do “Minha casa, minha vida” pela elementar razão: a mídia desconhece o passaredo e vice-versa. Além do quê, a ética da testemunha ocular veda delação.

Pois daí em diante passei a ter aquele belo pássaro, de topo de cabeça negro, como agressor gratuito dos pardais e por ladrão, tipo La gazza ladra**, da ópera de Rossini. Defesa de seu território não teria sido a motivação do assalto porque havia ele permitido o erguimento da moradia do joão-de-barro.

Se noites insones não tive, vivi recorrente sentimento de injustiça por causa daqueles conceitos negativos. Afinal, desde guri, tenho apreço por esse passarão de peito amarelo e de canto onomatopeico, o que imita seu nome popular. Vencida alguma reflexão, fiel ao direito de ampla defesa, decidi, em pensamento, pela reabertura do caso, em tentativa de pacificar a consciência.

Outra seria a verdade? 

Formulando hipóteses, bateu-me a ideia de que o bem-te-vi teria praticado o ato acreditando estar em solidária defesa de bem de terceiros, isto é, do par de forneiros, os construtores da moradia, pretensamente invadida.

Significaria dizer que não fora delituosa sua conduta.

Sim, a conclusão veio afagar meu senso de justiça, todavia a luzinha da dúvida segue piscando.

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* Qualquer semelhança com ações humanas terá sido mera coincidência.
* * Gazza: ave da Europa que costuma apossar-se de coisas brilhosas.

14/04/2015