Almiro Zago
O caso só não ganhou manchetes, tal
qual a corrupção, a violência, as invasões de apartamentos do “Minha casa,
minha vida” pela elementar razão: a mídia desconhece o passaredo e vice-versa.
Foi assim:
Na casinha de joão-de-barro pousada
num ressalto de parede do prédio vizinho, eram vistas, por seguidos dias, suspeitosas
entradas e saídas de pardais. Já ia formando mau juízo de dona joana, embora
ela nunca aparecesse, quando me veio à lembrança que os companheiros furnarius
rufus – joão e
joana –, de intensa labuta na
construção de sua morada, terminam por abandoná-la tão logo seus filhotes ganham
os ares.
Intuindo isso, imagino, certo pardal
e sua pardoca escolheram para preparar seu ninho exatamente a porta da ex-casa
dos barreiros. Ao redor, a toda hora, voava e pousava pequeno bando, por certo
de amigos do novo par, sempre alertas para conter frequentes investidas de um atrevido
bem-te-vi.
Na manhã da última escaramuça
entre essas aves, e eu vi, os passarinhos da guarda piavam desesperadamente,
esvoaçando em volta do agressor, também conhecido por pitangus
sulphuratus, que bateu asas em astuciosa retirada.
Ao sol brilhoso, passados uns
quantos minutos, ouviu-se outra zoeira da pardalada. Porém, dessa vez, mal pude
ver o bem-te-vi em voo ascendente, levando no bico o ninho do casal de pardais.
Que malvadeza*!
O caso só não ganhou manchetes, tal
qual a corrupção, a violência, as invasões de apartamentos do “Minha casa,
minha vida” pela elementar razão: a mídia desconhece o passaredo e vice-versa.
Além do quê, a ética da testemunha ocular veda delação.
Pois daí em diante passei a ter
aquele belo pássaro, de topo de cabeça negro, como agressor gratuito dos pardais
e por ladrão, tipo La gazza ladra**, da
ópera de Rossini. Defesa de seu território não teria sido a motivação do
assalto porque havia ele permitido o erguimento da moradia do joão-de-barro.
Se noites insones não tive, vivi
recorrente sentimento de injustiça por causa daqueles conceitos negativos.
Afinal, desde guri, tenho apreço por esse passarão de peito amarelo e de canto
onomatopeico, o que imita seu nome popular. Vencida alguma reflexão, fiel ao
direito de ampla defesa, decidi, em pensamento, pela reabertura do caso, em
tentativa de pacificar a consciência.
Outra seria a verdade?
Formulando hipóteses, bateu-me a
ideia de que o bem-te-vi teria praticado o ato acreditando estar em solidária
defesa de bem de terceiros, isto é, do par de forneiros, os construtores da moradia,
pretensamente invadida.
Significaria dizer que não fora
delituosa sua conduta.
Sim, a conclusão veio afagar meu
senso de justiça, todavia a luzinha da dúvida segue piscando.
****
* Qualquer semelhança com ações
humanas terá sido mera coincidência.
* * Gazza: ave da Europa
que costuma apossar-se de coisas brilhosas.
14/04/2015
Nenhum comentário:
Postar um comentário