quinta-feira, 8 de maio de 2014

Quando a arte revela o ser

Almiro Zago

Quem no Google pesquisar “obras de arte feitas por doentes mentais” ver-se-á diante de  centenas de pinturas, colagens ou desenhos criados por pessoas  que sofriam de alguma das doenças da mente. Impressionante é o caso de Arthur Bispo do Rosário, que por mais de 50 anos viveu recluso num hospício do Rio de Janeiro, e seus trabalhos mereceram reconhecimento dos círculos culturais do país. Já falecido, o artista plástico levou a vida acometido de  esquizofrenia paranoide.

Mas, na Internet, ninguém encontrará, e eu tampouco sei qual seja,  o diagnóstico da pessoa que minha atenção prendeu durante caminhada no parque, numa das primeiras manhãs de abril. Privilegiada  testemunha de sua performance, pude ver que seu talento não passava pelas artes plásticas, pois surgiu em plena representação teatral.

À vista de toda gente que olhos para ele tivesse, sentado a um banco estava o sujeito, tendo esparramado ao seu lado e sobre as pernas um saco de plástico com seus pertences materiais e  sua invisível carga de solidão.

Ao modo de bom aluno de reposicionamento postural  e expressão serena,  olhava fixamente para o objeto, que parecia um livro, segurado com ambas as mãos descansadas sobre as tralhas. Assim, deixava-se ver absorto, embevecido numa leitura quem sabe de atraente história  e enredo empolgante.

Deixei de ver de perto para não quebrar o encanto, mas poderia dar-se que lendo não estivesse. Porém, a aparência de quem já não paga passagem de ônibus  ajudava a tornar verossímil a figura de atentíssimo leitor.

Gravada na mente essa imagem, segui mais leve em meu caminhar, sequer imaginando que aquela não fora  apresentação isolada.

Deu-se que na manhã seguinte, antes das nove, em outra ambientação, mas no mesmo parque, o anônimo ator surpreendeu com algo tipo 2º ato de peça teatral de título ignorado, também de cena única, mas seguramente de sua autoria.

Aparecia ajeitado num banco perto do arvoredo, entre o indefectível sacolão de sua mudancinha e  um pequeno triciclo de plástico  rosa e verde, com rodas azuis,  e,  batendo  um pedacinho de pau numa latinha vazia,  se  esforçava  para marcar o ritmo de samba. Faceiro e sorridente, ia cantarolando  alguma coisa para sua plateia imaginária, ao jeito de velho sambista, com o grisalho dos cabelos curtos encimando sua negritude.

Espectador passante, me senti sorrindo, sem nada suspeitar sobre o que estaria à minha espera  na  manhã do terceiro dia.

Vinha o sol vencendo seu litígio com as nuvens, oito horas passadas, quando o inesperado tomou os contornos da cena do ato final  da  já conhecida peça:  o homem alto e magro, em roupas simples,  surgiu  a passos lentos no espaço da segunda encenação. Sob um braço, carregava aquele triciclo de plástico rosa e verde, e com a mão livre fazia girar delicadamente a rodinha dianteira do brinquedo, sussurrando palavras quase inaudíveis. Na figura de adulto, tudo nele revelava sensibilidade e encanto de criança. Talvez criança se sentisse. Ou, quiçá, esse papel quisesse desempenhar.

Ganhei do acaso a chance de apreciar,  de ser tocado pela paz e a suave alegria dos três atos de espontânea peça. Ou, por outra, belos quadros emoldurados de poesia do criativo ator desconhecido,  refúgio do doente  mental.

Tenho andado pelos mesmos lugares; dele, porém, não mais do que a lembrança.

Penso que a doença o tenha levado a representações por outros recantos da indiferente cidade, pois, como disse Arthur Bispo do Rosário, “os doentes mentais são como beija-flores: nunca pousam, ficam a dois metros do chão.”