quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Dois lados da gaiola

Almiro Zago

Ter em casa gaiola com passarinho, tempo houve, era assim como manter cachorro hoje em dia, embora não se visse todo esse interesse comercial que envolve a lida com os caninos. Deveria escrever pets? 

Da infância, vem a recordação de meus irmãos mais velhos fazendo um viveiro para aprisionar pintassilgos, que, aos bandos, frequentavam algumas plantas semelhantes ao girassol, de nossa horta, para se fartarem de sementinhas. Empolgado, participava da colocação de alçapões para apanhá-los, porém vitimados sempre eram os mais jovens, embora torcêssemos por algum astuto cabecinha preta. Depois, em sua prisão, debatiam-se tanto na busca da liberdade que acabavam morrendo. Ah, como isso me entristecia, embora se achasse normal prender os pequenos alados por egoísta deleite.

As coisas foram mudando, outra consciência se formou, chegando-se à mentalidade de proteção. Foram-se gaiolas e espingardas.

Lembrei-me disso tudo certa manhãzinha ao acompanhar pousos e decolagens de muitos passarinhos nas árvores transformadas em pracinha de alimentação do passaredo, perto de meu ponto de observação.

Num distraído levantar voo, certa avezinha pardacenta, bico preto, não identificada, pousou na rede de proteção da janela, sem notar minha presença no lado de dentro da vidraça. Ágil, perscrutou tudo o que lhe interessava e, num bater de asas, desapareceu.

Pois, naqueles poucos segundos, veja a ironia, por força da rede imaginei a sensação de estar dentro da gaiola, e o pássaro em liberdade. Nem quero pensar se a aparição da ave desconhecida queira dizer de vingança tardia dos pintassilgos mortos no viveiro, mas, ao fundo de minha consciência, uma luzinha de remorso reacendeu.

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10.10.2015

Ressonância com arte

Almiro Zago                                 

Numa dessas deprimentes manhãs de outubro, a chuva, essa visita abusada, não conseguiu me infundir temores de enfrentar o trânsito complicado para um exame de ressonância magnética.

Por isso, à hora marcada e com a antecedência pedida, abri a porta da recepção da clínica e, por instantes, desconfiei de ter errado de endereço. À minha frente surgiu um lugar que mais parecia um salão de artes, bom de espaço e adequadamente iluminado.  

Capturando meu olhar, as paredes exibiam quadros de bons pintores, inclusive um Gotuzzo. Cerâmicas e esculturas completavam o qualificado ambiente.

E aí o que seria tempo de espera, agradavelmente, consumiu-se na apreciação das obras de arte, como se estivesse numa bela exposição.

Chamado para a sala de exames, percorri um corredor com seus muros laterais mostrando muitos e belos quadros, e eu ia me esquecendo do que ali fora fazer.

Talvez meia hora depois, ainda estático, deitado no interior da máquina, ao som das insistentes batidas do aparelho em ação sobre meu crânio, formulei a plausível hipótese de que o inventor desse sistema de exame deveria ser, ou há de ter sido, grande apreciador do chamado rock pesado.

Afinal, uma forma de arte, também. 

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Sidi Center, Rua Prof. Freitas e Castro, 481.
10.10.2015

quarta-feira, 20 de maio de 2015

Ah, se o espelho ajudasse

Almiro Zago

Faz algum tempo, andei lendo belos textos de escritores famosos contando, com inteligente senso de humor e aquela fina ironia, fatos que os despertaram para a velhice chegando.

Agora, talento e qualidade à parte, não soube de nenhum dos autores ter vivenciado um feito tão insólito quanto o ocorrido a certo aprendiz de cronista, forçando-o a reconhecer-se na fase do natural declínio do corpo e da mente.

Pois no friozinho da manhã soavam rápidas as passadas em minha direção. Era um tanto perturbador o que ouvia, assim, como se alguém me quisesse alcançar. Os apressadinhos toques nas pedras do passeio denunciavam passos de salto alto.

Em pouco, vulto em aproximação se fazia perceber; um pouquinho mais, e um par de pés sobre dez centímetros de taco fino ia me deixando para trás. Ainda que de tênis estivesse, meu caminhar mais não rendia, salvo sensações bem conhecidas pelos vencidos de Gre-Nal.

Certeza nem tenho, mas pode ter acontecido lá pela entrada dos meus 70. Todavia, guardo o registro de ter sido essa a causa que, definitivamente, me levou a admitir: estou ficando velho, o que para você, talvez, novidade nem fosse.

Eppure sono contento, no entanto, estou contente, como diria a voz de Edoardo Vianello em “O mio signore”, canção italiana dos anos 1960, acessível via Internet. Obviedades fora, só envelhece quem vive, ou melhor, sobrevive nesta realidade assinalada por fortes traços de barbárie, a despeito dos fantásticos avanços científicos e tecnológicos.

Outros sinais, não decifrados, me haviam chegado anteriormente, como aquele revelado neste mesmo blog na crônica Senhor,senhor. Porém, nada com a força persuasiva do caso aí de cima.

Ah, em tempo!, o lado bom existe, sim, e o que mais enternece o coração e amacia o viver  chama-se netos.

Sem aviso, soube por intuição que nas faixas da terceira idade há rituais a observar. Em atenção a um deles, enfrentei, no recente abril, as cataratas, não as do Iguaçu, nem a cascata de Galópolis, mas aquelas dos olhos, um procedimento cirúrgico inescapável para muitos dos enquadrados nesse estágio.  

Por obra dessa intervenção médica e pelas maravilhas da ótica, ou óptica?, passei  a enxergar,  a ver tão  bem  como  se fora o adolescente sonhador.

Mas em vista de meu desdém por um indiscreto efeito colateral, descuidei  do preparo psicológico e fragilizado compareci ao pouco amável confronto no espelho — entre o novo no olhar e o velho na figura…

Eppure, estou contente!    

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Maio de 2015  



quinta-feira, 16 de abril de 2015

Assaltante alado

Almiro Zago

O caso só não ganhou manchetes, tal qual a corrupção, a violência, as invasões de apartamentos do “Minha casa, minha vida” pela elementar razão: a mídia desconhece o passaredo e vice-versa.

Foi assim:

Na casinha de joão-de-barro pousada num ressalto de parede do prédio vizinho, eram vistas, por seguidos dias, suspeitosas entradas e saídas de pardais. Já ia formando mau juízo de dona joana, embora ela nunca aparecesse, quando me veio à lembrança que os companheiros furnarius rufus joão e joana , de intensa labuta na construção de sua morada, terminam por abandoná-la tão logo seus filhotes ganham os ares.

Intuindo isso, imagino, certo pardal e sua pardoca escolheram para preparar seu ninho exatamente a porta da ex-casa dos barreiros. Ao redor, a toda hora, voava e pousava pequeno bando, por certo de amigos do novo par, sempre alertas para conter frequentes investidas de um atrevido bem-te-vi.

Na manhã da última escaramuça entre essas aves, e eu vi, os passarinhos da guarda piavam desesperadamente, esvoaçando em volta do agressor, também conhecido por pitangus sulphuratus, que bateu asas em astuciosa retirada.

Ao sol brilhoso, passados uns quantos minutos, ouviu-se outra zoeira da pardalada. Porém, dessa vez, mal pude ver o bem-te-vi em voo ascendente, levando no bico o ninho do casal de pardais. Que malvadeza*!

O caso só não ganhou manchetes, tal qual a corrupção, a violência, as invasões de apartamentos do “Minha casa, minha vida” pela elementar razão: a mídia desconhece o passaredo e vice-versa. Além do quê, a ética da testemunha ocular veda delação.

Pois daí em diante passei a ter aquele belo pássaro, de topo de cabeça negro, como agressor gratuito dos pardais e por ladrão, tipo La gazza ladra**, da ópera de Rossini. Defesa de seu território não teria sido a motivação do assalto porque havia ele permitido o erguimento da moradia do joão-de-barro.

Se noites insones não tive, vivi recorrente sentimento de injustiça por causa daqueles conceitos negativos. Afinal, desde guri, tenho apreço por esse passarão de peito amarelo e de canto onomatopeico, o que imita seu nome popular. Vencida alguma reflexão, fiel ao direito de ampla defesa, decidi, em pensamento, pela reabertura do caso, em tentativa de pacificar a consciência.

Outra seria a verdade? 

Formulando hipóteses, bateu-me a ideia de que o bem-te-vi teria praticado o ato acreditando estar em solidária defesa de bem de terceiros, isto é, do par de forneiros, os construtores da moradia, pretensamente invadida.

Significaria dizer que não fora delituosa sua conduta.

Sim, a conclusão veio afagar meu senso de justiça, todavia a luzinha da dúvida segue piscando.

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* Qualquer semelhança com ações humanas terá sido mera coincidência.
* * Gazza: ave da Europa que costuma apossar-se de coisas brilhosas.

14/04/2015

  

segunda-feira, 16 de março de 2015

Bandinha da Gol

Ou o bom humor faz diferença

Já se fazia noite naquele sábado sete de março.

Pelo portão 12, do aeroporto de Congonhas, alcançamos a porta do avião da Gol, do voo 1216, das 20h20, que nos levaria de volta a Porto Alegre. 

As boas-vindas a bordo, recebemos de um comissário e duas colegas aos sorrisos soltos.

Integrantes da categoria prioridades, a Irene e eu fomos os primeiros passageiros a chegar. Sem ter pensado nisso antes, fingindo ar de decepção, perguntei ao moço: e a banda de música?

Pois aí, revelando invejável presença de espírito e inventividade, o comissário passou a soprar um imaginário trompete, sendo instantaneamente acompanhado pelas aeromoças, cantarolando e ensaiando passos ritmados… Claro, tudo para dar vida à reclamada banda e nos fazer alegre e carinhoso agrado e uma divertida recepção. 

Que música tocaram? Ninguém me pergunte.
Mas isso nem tudo é.

Aproximava-se o voo de seu final, quando o comissário trompetista nos disse, teatralizando a cena, que estava muito sentido porque não pudera oferecer um jantar “ao casal em lua de mel”, pois na hora do serviço de bordo* eu estava adormecido...

Pouco depois, ao desembarque, a despedida aconteceu ao som de breve performance da originalíssima banda, que nos deixou tocados pela brincadeira tão bacana. Sem dizer da boa lembrança.

Bem queria que a Gol soubesse da espontânea encenação improvisada por três de seus bons funcionários pintando aos nossos olhos bela e simpática imagem da empresa, coisa nem sempre fácil para a publicidade.

Agora, quando você viajar de avião, invente sua pergunta aos tripulantes da recepção. Tente pedir pela banda de música ou de rock, pela sanfona, guitarra. Se vai funcionar, é outra conversa.
                                                     *******
*A Gol vende lanches.

Nota:
Voltávamos de São Paulo com o Fernando, depois de festejar o sexto aniversário do nosso neto e sobrinho Alex, o irmãozinho da Mariana, filho da Gabriela e do André.


(10.03.2015)