terça-feira, 27 de fevereiro de 2007
BREVE RELATO
Marco Antônio Poglia
Conheci, no ano passado, um senhor chamado Jaime Viñas. Tinha sessenta e três anos de idade - intensamente vividos, pelas histórias que contava. Com sua voz aguda e ar entusiasmado, falava sobre suas andanças pelo sul do continente e sobre as variadas aptidões que possuía, e que lhe permitiram trabalhar em diversos setores de serviços, além de ser pescador e por muitos anos praticante de boxe e natação.
De origem uruguaia, orgulhava-se de falar a língua castelhana. Talvez por isso gostasse tanto de autores latino-americanos, como Juan Ramón Jiménes, Jorge Luis Borges, García Márquez e Neruda. Também cantarolava tangos de Carlos Gardel, que sempre considerou melhor que Piazzolla. Não pronunciava mais do que algumas frases em inglês - e outras em língua que dizia ser francesa, e eu acreditava - mas gostava muito de Alan Poe e Ernest Heminguay. E ainda Dostoievski e, no Brasil, Aluísio de Azevedo.
Já há alguns anos Seu Jaime andava pelo Bom Fim, onde acabou se estabelecendo. Morava na rua Tomás Flores, esquina com a Vasco da Gama. Rodeada de prédios pequenos e quase ausente de estabelecimentos de comércio, é uma rua sombria e muito tranqüila à noite - pelo menos aos que habitam esses prédios. Mas não era o caso do Seu Jaime, que como disse, morava na rua (a rua Tomás Flores).
Na última vez que o vi, em outubro passado, estava muito abatido. Visivelmente doente, sentado na beira da calçada com olhar triste e desfocado. "O cara que tá nessa vida tá sujeito a ficar depressivo", resmungava cabisbaixo, enquanto lhe escorria uma lágrima esbranquiçada sobre o rosto. Perguntei o motivo da sua tristeza mais pra ter assunto do que pra confirmar o que notava: todos os seus pertences (papelões, garrafas, cobertores) haviam sido levados, e sua moradia se resumia agora a um muro branco com cartazes eleitoreiros e uma calçada, limpa, para o trânsito do povo educado.
Fui embora com a sensação de que não iria mais encontrá-lo. Passados alguns dias retornei com alimentos e um cobertor, mas antes disso cumpriu-se minha profecia. Sob o laudo de coma alcoólica e registro como indigente, seu provável futuro foi servir para experimentos da faculdade de medicina. Hoje melhor compreendo por que nas ruas de Porto Alegre homens dormem abraçados em seus pertences. "Quando a gente gosta é claro que a gente cuida". Há alguns dias, caminhando na rua da República pela manhã, uma cena lastimável me aperta o peito: um menino dormia sobre a calçada, com uns farrapos de roupas e um pedaço de cobertor, entornando com um dos braços seu único e perecível objeto de apreço: uma banana madura, talvez por muitos desejada.
quinta-feira, 22 de fevereiro de 2007
PROSTITUIÇÃO
Américo Conte
Não estou aqui, absolutamente, a tomar partido do que quer que seja e nem a defender atitudes que também independem de qualquer avaliação. Mas, simplesmente a frisar conceitos que não posso deixar de observar.
Vivemos inseridos em uma sociedade que tem como norma impressionar-se com tudo que visceralmente se relaciona ao corpo físico. É lógico que imprescindivelmente o corpo é tudo do que dispomos para a possibilidade dos contatos e relações, desde os mais afetuosos e sexuais deleites, assim como os atritos e mortais agressões. Todavia a violência imposta pelas exigências da beleza e da jovialidade com os seus vestuários de grife, como se estes fatores fossem indispensáveis para a realização de um humano, insensivelmente passam desapercebidos. E cada indivíduo que se vire e se desdobre como puder na procura e na manutenção destes atributos. A conjuntura a respeito sobre a subsistência dos caprichos sociais de um cidadão, não é condescendente com ninguém. E salve-se quem puder.
No entanto as pessoas ficam totalmente chocadas e intolerantes com o uso do corpo como meio de sobrevivência, através da prostituição sexual.
Acredito que só a disponibilidade do corpo para todo e qualquer ofício, é o menor dos malefícios. Porque as empresas, instituições e ideologias, não se contentam simplesmente com a absorção desta matéria. Elas exigem bem mais, para o sucesso de seus empreendimentos e objetivos. Querem suas mentes, suas essências e suas energias que sugam sem piedade até a última gota deste sumo. E pela falta de oportunidades e perspectivas, manipulados ou inconscientes, homens e mulheres entregam a sua saúde, sua alma e os seus sonhos a preços irrisórios, prostituindo-se e abdicando dos seus ideais em prol de supostas facilidades que aparentemente inofensivas comprometem a integridade do seu ser e os mantém escravos, dependentes e subservientes de artificialidades por uma vida inteira.
E muitas e muitas vezes, vazios e desencantados, estes seres vem suprir as suas carências nos corpos dos que abominavelmente condenam como réprobos.
AMADOS BICHINHOS
Américo Conte
A galinha não estava
no quintal, para enfeite,
mesmo os seus ovos fresquinhos
não a poupavam do batente.
Entre as plantas verdejantes,
tinha um oficio a desempenhar,
catar formigas e lesmas,
também outras pragas...
que as viessem ameaçar.
Se acaso em sua missão
ela viesse a falhar,
na cozinha, a panela,
era um espectro...
a lhe aterrorizar.
Todo bicho queridinho
sempre tem uma função,
e se ele não se comporta,
o destino, não há se ser bom.
O homem é sempre companheiro
se fizerem o que ele quer,
mas, se acaso é desacatado,
salve-se quem puder!
segunda-feira, 5 de fevereiro de 2007
O GOSTO DO BEIJO
Karen Scopel
Doces, eles eram sua obsessão, sua mania, comia-os muito devagar, saboreando cada pedaço, deixando aquele que mais gostava por último, assim permanecia com seu gosto na boca por mais tempo. Enquanto a maioria das pessoas morde o bolo começando pela cobertura, ela não, ia comendo aos pouquinhos e, por último, se deliciava com a cobertura.
Esperava que no amor também fosse assim, queria encontrar um homem e sentir o seu gosto, de preferência se deliciar com ele para sempre. A primeira vez que viu Lucas, ele estava podando as árvores no jardim da casa vizinha, da janela do segundo andar pôde admirá-lo. Ele parecia cuidar tão bem daquelas plantas que ela chegou a pensar que um dia gostaria que ele tivesse com ela os mesmos cuidados.
No dia seguinte, convenceu a dona da casa em que trabalhava de que o jardim precisava de melhorias e que, inclusive, o da sua vizinha estava muito bonito. O novo jardineiro era entendido no assunto e de confiança, ela já havia se informado.
Foi assim que Lucas entrou em suas vidas, na dela e na de Júlia, para quem trabalhava fazia dois anos. Já no primeiro dia, esforçou-se em ser notada pelo jardineiro, de hora em hora lhe levava água ou refrescos, no meio da tarde providenciou até um lanche, imaginou que o rapaz devia ser tímido, pois mal levantava os olhos para lhe agradecer.
Veio o fim da tarde, e com ele, Júlia. Uma mulher alta, de olhos claros e cabelos longos. Naquele dia vestia uma saia de florzinhas e uma blusa branca, estava bonita. Da mesma janela em que observava Lucas, viu Júlia ultrapassando o portão, pôde ver, também, que ele finalmente ergueu os olhos, enxugou o suor do rosto um pouco envergonhado e olhou Júlia com um misto de surpresa e fascinação. Conversaram um pouco sobre as mudanças no jardim, enquanto ela permanecia na janela, sentindo um aperto no peito e um arrepio que lhe cortava a alma. Sem entender muito bem o porquê, desviou o olhar e fechou a cortina.
Nos dias que se passaram continuou tentando agradar Lucas, arrumava-se melhor, estava sempre com a boca pintada de um batom cor-de-boca, como a vendedora da loja lhe havia dito, passou a usar o perfume ganho no Natal e que reservava apenas para as datas especiais. Achava que valia a pena usá-lo para o Lucas. Para seu desespero, passou a notar que ele, ao final da tarde, antes que Júlia chegasse, usava a mangueira do jardim para se lavar, começou também a trocar a camiseta suada por outra limpa, que trazia dobrada com cuidado dentro da sua mochila de trabalhador.
Que gosto teria aquele beijo? Era só nisto que ela pensava. Acordava no meio da noite durante seus sonhos, nos quais beijava Lucas e jurava sentir seu gosto, doce e quente como uma calda de chocolate, daquelas que se coloca sobre o sorvete e que se delicía aos pouquinhos.
Lucas estava quase terminando seu trabalho no jardim, enquanto ela se desesperava, seria preciso se declarar a ele, não poderia esperar mais. Passou, então, a imaginar uma maneira de fazer isto. Pronto, ao final do dia iria convidá-lo para o tal sorvete, o do sonho, tinha certeza que aquele beijo seria seu.
O fim do dia chegou e ela, perdida em seus pensamentos, nem notou o retorno de Júlia. Era chegada a hora de falar com Lucas e fazer o tal convite. Ao chegar ao jardim, porém, suas pernas começaram a tremer e lhe pareceu que o seu mundo desabava. Lá estavam Lucas e Júlia saboreando o beijo um do outro, sentindo o gosto que ela imaginava, seria só seu a partir daquele dia.
Aos poucos foi se afastando, devagar, para que sua presença não fosse percebida, entrou na casa, pegou sua bolsa e, como se estivesse em transe, foi embora, saboreando um gosto amargo, bem diferente do que sonhou, mas que, com certeza, não esqueceria jamais.
quinta-feira, 31 de janeiro de 2008
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