terça-feira, 12 de maio de 2009

As mãos do Pastor

Karen Scopel

     Suas mãos eram macias, talvez as mais macias que já toquei. Quando ele apareceu para marcar horário comigo achei estranho, os homens do bairro não costumavam freqüentar meu salão, faziam barba e cabelo na barbearia do Seu Cristóvão, mas, com aquela pinta toda e com a Bíblia em baixo do braço, imaginei que ele procurava um atendimento diferenciado, sim, é isto que eu procuro oferecer às minhas clientes e também aos poucos homens que atendo, tratamentos novos e cortes da moda, molhar o cabelo com aquele borrifador cheio de água morna e passar a máquina, nem pensar, lavo, corto, seco e escovo, dependendo do caso. Mais tarde ele me explicou, o salão do Seu Cristóvão não tinha manicure.

     No primeiro dia fiquei apreensiva, seu olhar intenso me deixou nervosa e aquelas mãos tão delicadas, tive medo de machucá-las. Lixar e tirar a cutícula eram, para mim, tão simples que podia fazer sem pensar muito, porém, sentada ali na frente dele, parecia que eu tinha desaprendido tudo. Respirei fundo e tentei tratá-lo como qualquer cliente, falei sobre o calor e de como a obra do outro lado da rua estava ficando bonita, ia ser a maior igreja do bairro, ele educado me corrigiu, não seria uma igreja, seria um templo e ele o Pastor responsável. Seguimos assim, nesta conversa esquisita, eu fazendo de conta que não estava nem aí, enquanto ele fingia não olhar para as minhas pernas.

     O Pastor João Pedro acabou se tornando cliente com horário fixo uma vez na semana. À medida que a obra avançava, ele também crescia aos olhos da comunidade, passava horas conversando com os moradores e convidava a todos para o culto de inauguração do novo Templo, que seria em breve.  As mulheres passaram a disputar os horários no meu salão próximos ao horário dele, ele não pregava, mas as escutava, coisa que a maioria de seus maridos não fazia.

     O Pastor, como ele gostava de ser chamado, me impressionou muito e os dias em que o atendia eram de ansiedade e inquietação, depois, à noite, sozinha na minha cama, tinha sonhos impuros, talvez até pecadores, fico em dúvida se sonhar também é pecado, se bem que às vezes eu não ficava só no sonho, mas no sonho, suas mãos macias acariciavam meu rosto, depois desciam pelas costas e infiltravam-se por entre as minhas pernas, várias vezes acordei assustada, agitada, quase sufocando, sentia meu corpo queimando de vontade de sentir aquelas mãos enluvadas de algodão, sim, era isso, eram mãos de algodão capazes de provocar arrepios e despertar desejos.

      Em uma tarde quente, logo depois do almoço, eu estava sozinha no salão e ele apareceu fora do horário combinado, mesmo assim, começamos o ritual, cortei suas unhas, lixei, quase que sem encará-lo, então, sua mão pousou sobre minha coxa, devagarzinho começou a deslizar por baixo da minha saia, ele aproximou seu rosto do meu e começou a sussurrar coisas que eu jamais pensei ouvir da boca de um Pastor, assim, fechei o salão por algumas horas e ele saiu mais tarde, pela porta dos fundos, com as unhas ainda por fazer. Não começamos a namorar oficialmente, achei que ele queria aguardar que o Templo fosse inaugurado para assumir nosso compromisso, na verdade, nunca tocamos no assunto, pois sempre que ele chegava de surpresa no salão, sentávamos frente a frente e eu mal tinha tempo de cortar ou lixar suas unhas. Também não sei se as pessoas desconfiavam do nosso envolvimento, mas notei que minhas clientes crivavam-me de perguntas sobre ele e, algumas vezes, seus comentários pareciam-me maldosos, principalmente quando se referiam às doações da esposa do Jorjão, o bicheiro, para as obras do Pastor.

     Estranhei quando, de uma hora para outra, ele diminuiu suas visitas inesperadas e até mesmo o fato de faltar sem aviso aos horários combinados para fazer as mãos. Porém, quando ele reaparecia, eu aceitava as desculpas e acreditava realmente que as suas tarefas com os pobres necessitados estavam deixando-o sem tempo e que captar fiéis era um trabalho árduo que demandava muito empenho. Estranhei, também, o surgimento de uma nova cliente, Telminha, a Sra. Jorjão, que tinha a fama de gastar horas e dinheiro nos salões de beleza mais chiques da cidade, além disso, fiquei muda quando ela me perguntou sobre meu relacionamento com o Pastor, não sabia o que responder, mas pressenti que não deveria falar muito, respondi apenas que ele era um ótimo cliente e seu trabalho junto à comunidade iria trazer muitos benefícios para todos. Ela passou, então, a falar sobre suas lojas preferidas e da cor dos cabelos para a próxima estação e antes de sair me disse num tom esquisito, não entendi se de aviso ou de ameaça, talvez os dois, que eu deveria ter cuidado, que nem tudo é o que parece, estava claro, ela estava falando dele. A conversa daquela mulher não saía da minha cabeça, contei ao Pastor, justamente para ver sua reação, ele ficou nervoso, senti, disfarçou e me disse que ela era excêntrica, para confirmar procurei essa palavra no dicionário, mas seu significado não combinava com a impressão que eu tinha tido dela.

     Um dia antes do tal culto de inauguração, abri o salão e havia um burburinho do outro lado da rua, em frente ao Templo, logo descobri que a polícia estava lá vasculhando tudo, entretanto ninguém sabia ainda dizer o motivo de tanto alvoroço. O Pastor tinha estado comigo na manhã do dia anterior, achei-o um pouco nervoso, mas imaginei que era porque o dia especial que ele tanto planejou estava se aproximando. A notícia de que algo de ruim tinha acontecido se espalhou rápido, tive que responder perguntas a um policial mal educado que trazia entre os lábios um palito de dentes, enquanto me ouvia pousava o olhar sobre o meu decote e mordia o palito agilmente, fazendo-o passear de um canto ao outro da boca. Poucas horas depois recebi a notícia de que o meu Pastor tinha sido encontrado morto, num beco imundo, não se sabia o que havia acontecido de fato, a única certeza que se tinha é de que quem o matou cortou-lhe fora as duas mãos, e, estas, não haviam sido encontradas. Meus sentimentos foram desajustados, senti uma dor esquisita e me senti sozinha, com medo lembrei logo das palavras daquela mulher. Fiquei meio sem rumo, não sabia se contava sobre nós dois, se falava dela, da Telminha, mas e a polícia, poderiam me considerar suspeita, não que eu tivesse coragem para uma coisa dessas, mas alguém podia pensar nisso, dizer que nem sempre se conhece as pessoas e que podemos muito bem nos enganar a respeito delas, resolvi me manter a calada. Muito se especulou sobre quem seria o assassino e os motivos de uma atitude tão brutal contra uma pessoa que parecia tão inocente.

     O velório marcou a inauguração do Templo e, no caixão, lhe puseram duas luvas no lugar das mãos, toquei nelas com receio, mas eram macias como se feitas de algodão.     

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito bom!
Chintia Boaventura