Almiro Zago
Eram
aqueles dias de março em que se espera a benfazeja rotina, quase como se
aguarda a mulher amada, no aeroporto, em voo atrasado.
Num
amanhecer, noutro e outro, passei a sentir falta de alguma coisa, por ignoradas
razões.
Às
vezes, alguma esquisitice me assalta, mas tudo acontecia ao acordar em minha
cama, no silêncio daquela hora em que a noite prepara sua entrega ao dia.
Já
andava à espreita a oportunista ansiedade, quando um sentimento de perda, de
ausência veio apertando o peito, ao acordar, semana, duas.
Enfim,
abril entrou numa pontinha de inquietude e, certa madrugadinha, fez soar um trinado
de pássaro, ao longe. Sim, do joão-de-barro vinha aquele som agudo, recuperando,
em décimos de segundo, o código de ligação de conexões da memória.
Ah,
o rumor dos vizinhos alados, pertinho da minha janela... Que falta me fazia!
Dizia-me,
o desvelado enigma, que o adorável casal do lado, meus bons vizinhos, o
João-de-barro e sua Joana, haviam alçado voo para lugar incerto e não sabido.
Nostálgico,
resignei-me aos fatos: aqueles gorjeios, não raro entre confusos estágios de
consciência, nunca mais os escutaria, ao menos da forma afetuosamente familiar,
como fora.
Se
haviam chegado sem pedir licença, foram-se sem dar adeus. E também seus
parentes, seus amigos, de cima a baixo dos cinco andares da face norte do meu
prédio.
Como
lembrança, ficaram suas casinhas, de porta aberta, abandonadas. Nem sequer tabuletas
de “vende-se”, “aluga-se” deixaram...
Olhar
da rua as desprezadas moradias entristece o coração, particularmente de quem
teve amável convivência com os barreiros, acompanhando de perto a edificação do
“conjunto habitacional”.
Ano
passado, do verão ao fim do outono, tiveram, esses passarinhos, dias e dias de
intensa atividade construtiva, como bem sabem os leitores da crônica “Furnarius
rufus ou histórias de amor e trabalho”.
Quando
notei o desaparecimento das aves, que tão próximas de mim viveram, cheguei a
pensar em afastamento temporário; sem demora, voltariam, como as andorinhas, que
atrasaram seu retorno na primavera italiana.
Ou,
pior, talvez fosse sumiço, como o caso das abelhas.
Conforta
ver barreiros na rua, no parque; ouço deles o típico chilrear, mas nenhum
joão-de-barro voa por perto, nem pousa nos peitoris das sacadas vizinhas das
moradias deixadas.
Sei,
claro, que é da índole do casal joão-de-barro, de ligação perene, trocar de
ninho a cada ano. Mas aqui, ao meu lado, por que a mudança em massa?
Por
consolo, invoco o amor à liberdade dos pássaros.
E
o que me resta é esperar pelos ares de primavera e, com eles, os sabiás madrugadores.
Os
sabiás cantores.
(19.05.2013)
***
Furnarius
rufus ou histórias de amor e trabalho
Almiro Zago
Ao
certo, ninguém sabe há quanto tempo vivem eles na vizinhança, mas certeza tenho
de que por aqui chegaram bem antes de mim, embora poucas de suas habitações
fossem vistas, até recentemente.
Alguma
coisa mudou, pois ao final do verão, suaves e razoavelmente discretos e
pacíficos, já haviam consolidado a posse de espaços, onde ergueram três
moradias.
O
outono, passaram em atividade, tanto que na chegada do inverno já eram cinco as
edificações. E sem notícias de resistência de proprietários, ou pedidos
judiciais de reintegração de posse.
Desconfio
que os nossos invasores alados contam com um programa, tipo “Minha casa, minha
vida”, da Dilma.
Coisa
linda é ver da rua os “forninhos” de barro, em homogêneo estilo arquitetônico,
numa espécie de condomínio anexo ao edifício onde moro. Cada unidade habitacional, uma por andar,
ocupa o ângulo da moldura decorativa, entre parede e sacada.
Sábios,
os furnarius rufus escolheram a orientação solar norte.
Certificados
pelo próprio DNA, os talentosos arquitetos trabalham em regime de cooperação
conjugal, usando materiais ecologicamente corretos, recolhidos e carregados na
ponta do bico. Já imaginaram as centenas ou milhares de idas e vindas até o
final da construção?
Dispensados,
claro, de autorização para construir, autoconcedem-se o “habite-se” ao seu
ninho, quando acabada a parede que separa o corredor da câmara incubadora. Ao
contrário deste habitante da parte de dentro do prédio, são isentos de IPTU,
desconhecendo os aborrecimentos com as contas de água, luz, telefone e, ainda
por cima, ignoram taxas ou despesas de condomínio.
Crônica publicada em 25 de julho de 2012 aqui.
***
O adorável casal do lado
Almiro Zago
De
acaso em acaso, acompanhei enternecido alguns momentos do trabalho de um dos
casais forneiros, o João-de-barro e sua Joana, cuja união é para sempre. Quer
dizer, sem separação ou divórcio. Ter-se-ia o Cristianismo inspirado nesses
pássaros para afirmar a indissolubilidade do matrimônio? Ou o contrário?
Empenhado,
o jovem par finalizava sua casa logo abaixo da minha janela. Mas o aparecimento
de torrões de barro no peitoril da abertura denunciava atividade mais acima.
Dito e feito: outra obra na base do andar superior, tocada pelo mesmo casal do
andar de baixo. Pelo jeito, a família
vai crescer.
Garantindo
proximidade, ao escutar um gorjeio, postava-me, qual estátua, junto ao vidro da
janela, ou sacada. Assim, várias vezes, em diferentes dias, conferi a chegada
de um dos pássaros com sua carga de material de construção na ponta do bico.
Pousava perto do “forninho”, emitia um chilreio de aviso, ficando à espera de
que o parceiro liberasse o ponto para completar sua tarefa.
Se
faltava, a cena mais encantadora deu-se certa manhã, recém-clareado o dia.
Pouco afastado, o João, entre um gorjeio e outro, olha para sua morada, como se
estivesse a esperar por alguém. Correm alguns segundos e sua Joana aparece e a
passos calmos vai ao seu encontro.
Amorosamente,
ficam juntinhos como se combinassem um roteiro. Em pouco, alçam voo sobre o
arvoredo e as ruas, livres de estresse e de toda sorte de preocupações que
acometem a vida humana.
Nenhum comentário:
Postar um comentário