sexta-feira, 24 de maio de 2013

“Furnarius rufus”: o epílogo


Almiro Zago                                        
     
Eram aqueles dias de março em que se espera a benfazeja rotina, quase como se aguarda a mulher amada, no aeroporto, em voo atrasado.

Num amanhecer, noutro e outro, passei a sentir falta de alguma coisa, por ignoradas razões. 

Às vezes, alguma esquisitice me assalta, mas tudo acontecia ao acordar em minha cama, no silêncio daquela hora em que a noite prepara sua entrega ao dia.   

Já andava à espreita a oportunista ansiedade, quando um sentimento de perda, de ausência veio apertando o peito, ao acordar, semana, duas.

Enfim, abril entrou numa pontinha de inquietude e, certa madrugadinha, fez soar um trinado de pássaro, ao longe. Sim, do joão-de-barro vinha aquele som agudo, recuperando, em décimos de segundo, o código de ligação de conexões da memória.

Ah, o rumor dos vizinhos alados, pertinho da minha janela... Que falta me fazia!

Dizia-me, o desvelado enigma, que o adorável casal do lado, meus bons vizinhos, o João-de-barro e sua Joana, haviam alçado voo para lugar incerto e não sabido.  

Nostálgico, resignei-me aos fatos: aqueles gorjeios, não raro entre confusos estágios de consciência, nunca mais os escutaria, ao menos da forma afetuosamente familiar, como fora.

Se haviam chegado sem pedir licença, foram-se sem dar adeus. E também seus parentes, seus amigos, de cima a baixo dos cinco andares da face norte do meu prédio.

Como lembrança, ficaram suas casinhas, de porta aberta, abandonadas. Nem sequer tabuletas de “vende-se”, “aluga-se” deixaram...

Olhar da rua as desprezadas moradias entristece o coração, particularmente de quem teve amável convivência com os barreiros, acompanhando de perto a edificação do “conjunto habitacional”.

Ano passado, do verão ao fim do outono, tiveram, esses passarinhos, dias e dias de intensa atividade construtiva, como bem sabem os leitores da crônica “Furnarius rufus ou histórias de amor e trabalho”.

Quando notei o desaparecimento das aves, que tão próximas de mim viveram, cheguei a pensar em afastamento temporário; sem demora, voltariam, como as andorinhas, que atrasaram seu retorno na primavera italiana.

Ou, pior, talvez fosse sumiço, como o caso das abelhas.

Conforta ver barreiros na rua, no parque; ouço deles o típico chilrear, mas nenhum joão-de-barro voa por perto, nem pousa nos peitoris das sacadas vizinhas das moradias deixadas.
   
Sei, claro, que é da índole do casal joão-de-barro, de ligação perene, trocar de ninho a cada ano. Mas aqui, ao meu lado, por que a mudança em massa?

Por consolo, invoco o amor à liberdade dos pássaros.

E o que me resta é esperar pelos ares de primavera e, com eles, os sabiás madrugadores.

Os sabiás cantores.

(19.05.2013)

***

Furnarius rufus ou histórias de amor e trabalho

Almiro Zago

Ao certo, ninguém sabe há quanto tempo vivem eles na vizinhança, mas certeza tenho de que por aqui chegaram bem antes de mim, embora poucas de suas habitações fossem vistas, até recentemente.

Alguma coisa mudou, pois ao final do verão, suaves e razoavelmente discretos e pacíficos, já haviam consolidado a posse de espaços, onde ergueram três moradias.

O outono, passaram em atividade, tanto que na chegada do inverno já eram cinco as edificações. E sem notícias de resistência de proprietários, ou pedidos judiciais de reintegração de posse.

Desconfio que os nossos invasores alados contam com um programa, tipo “Minha casa, minha vida”, da Dilma.

Coisa linda é ver da rua os “forninhos” de barro, em homogêneo estilo arquitetônico, numa espécie de condomínio anexo ao edifício onde moro.  Cada unidade habitacional, uma por andar, ocupa o ângulo da moldura decorativa, entre parede e sacada.

Sábios, os furnarius rufus escolheram a orientação solar norte.

Certificados pelo próprio DNA, os talentosos arquitetos trabalham em regime de cooperação conjugal, usando materiais ecologicamente corretos, recolhidos e carregados na ponta do bico. Já imaginaram as centenas ou milhares de idas e vindas até o final da construção?
 
Dispensados, claro, de autorização para construir, autoconcedem-se o “habite-se” ao seu ninho, quando acabada a parede que separa o corredor da câmara incubadora. Ao contrário deste habitante da parte de dentro do prédio, são isentos de IPTU, desconhecendo os aborrecimentos com as contas de água, luz, telefone e, ainda por cima, ignoram taxas ou despesas de condomínio.

Crônica publicada em 25 de julho de 2012 aqui.

***

O adorável casal do lado

Almiro Zago

De acaso em acaso, acompanhei enternecido alguns momentos do trabalho de um dos casais forneiros, o João-de-barro e sua Joana, cuja união é para sempre. Quer dizer, sem separação ou divórcio. Ter-se-ia o Cristianismo inspirado nesses pássaros para afirmar a indissolubilidade do matrimônio? Ou o contrário?

Empenhado, o jovem par finalizava sua casa logo abaixo da minha janela. Mas o aparecimento de torrões de barro no peitoril da abertura denunciava atividade mais acima. Dito e feito: outra obra na base do andar superior, tocada pelo mesmo casal do andar de baixo.  Pelo jeito, a família vai crescer.

Garantindo proximidade, ao escutar um gorjeio, postava-me, qual estátua, junto ao vidro da janela, ou sacada. Assim, várias vezes, em diferentes dias, conferi a chegada de um dos pássaros com sua carga de material de construção na ponta do bico. Pousava perto do “forninho”, emitia um chilreio de aviso, ficando à espera de que o parceiro liberasse o ponto para completar sua tarefa.

Se faltava, a cena mais encantadora deu-se certa manhã, recém-clareado o dia. Pouco afastado, o João, entre um gorjeio e outro, olha para sua morada, como se estivesse a esperar por alguém. Correm alguns segundos e sua Joana aparece e a passos calmos vai ao seu encontro.

Amorosamente, ficam juntinhos como se combinassem um roteiro. Em pouco, alçam voo sobre o arvoredo e as ruas, livres de estresse e de toda sorte de preocupações que acometem a vida humana.                         

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