(Especial para a edição de 19.02.2010 do Semanário Tempo Todo, de Caxias do Sul)
Nestes dias em que se respira atmosfera de Festa da Uva, me assalta a vontade de andar à sombra dos parreirais de olfato impregnado de perfume de uvas tintas.
E isso pode ser enquanto existirem vinhedos conduzidos em latadas, em vias de extinção diante do avanço de outras técnicas de condução, como a espaldeira e a Y, essas que expõem as uvas ao sol ao jeito das mulheres na praia.
Nada mais poético, nem mesmo um roseiral florido, e olhem que a rosa é minha flor favorita, do que um vinhedo vergado pelos cachos de uvas maduras. Pois é toda poesia a vida de uma videira e sua morte fingida no dourado das folhas de outono.
A uva e o vinho, desde sempre, têm sido motivos de celebrações, a começar pela vindima, tempo festivo, e, no Rio Grande, traço de união entre as Colônias Italianas, outrora compartilhados com os trigais, expulsos, depois, pelas terras empobrecidas. Mas a despeito de granizos, crises e geadas, por amorosa teimosia de agricultores e vinhateiros, ficaram as vinhas.
Época houve, enquanto Caxias do Sul se desenvolvia com suas fábricas e seu comércio, que seu prestígio no Estado e no País provinha da Festa da Uva, do seu vinho e dos produtos Eberle.
Em boa parte, pela vitrina da Festa da Uva a indústria caxiense mostrou-se ao mercado. Porém, em algumas edições o setor industrial dominou o evento, avançando em sofisticação, reservando um segundo plano ao lado típico e à própria uva.
Famosa convidada despertou-me para o fato, em 1972, quando a transmissão em rede nacional do desfile de carros alegóricos inaugurou a televisão em cores no Brasil. Numa entrevista radiofônica, quis saber da atriz Tônia Carrero sua impressão da Festa da Uva: "Mas onde estão as uvas? Até agora, vi uma bonita festa industrial..."
As coisas acabaram mudando e a festejada uva recuperou o seu lugar e não mais deixou de ser a vedete dos festejos. E a indústria, frequentemente, sua aliada.
Gosto de contar que minha mais remota ligação com a Festa da Uva vem de 1950, nos 75 anos da Colonização Italiana. Meus pais estiveram na cidade e de volta para casa, na colônia, falavam com entusiasmo sobre os carros alegóricos.
Eu não entendia bem o que fossem esses carros.
Passados alguns dias, fui à cidade com meu pai. Ainda na periferia, admirei-me de ver uma fábrica grande e, à sua frente, uma extensa várzea, por onde adentrava um estranho e belo veículo. Bem diferente daqueles poucos que já vira, parecia um caminhão de carroceria fechada, arredondada na parte de cima, todo pintado de verde, refletindo o sol da manhã. Ao olhar do guri de sete anos, aquilo era novidade e fascínio. Então, curioso, ao meu pai perguntei:
- Esse aí é um carro alegórico da Festa da Uva?
- Não, não... é um caminhão do Randazzo carregado de lixo...
Randazzo, um cidadão italiano, era o concessionário da coleta do lixo e, ao fundo daquelas terras, ficava o que atualmente conhecemos como lixão.
* * *
Da série Civilidade:
Verão, o que resta para contar
Almiro Zago
Invisível poder declarou obrigatório: todo e qualquer evento tem de ser acompanhado por música barulhenta, indiferente aos decibéis.
O mundo contemporâneo tem sido pródigo em aparatos tecnológicos para tudo, a pretexto de proporcionar conforto e comodidade, satisfação e lazer à vida das pessoas, segundo endeusa a publicidade.
Mas se o gênio da lâmpada de Aladim atendesse meu desejo, faria desaparecer, ou melhor, reduzir em pelos menos nove décimos um deles. Refiro-me ao recurso da amplificação sonora, praga azucrinante da vida de muita gente.
E o diria alto e bom som, se fosse à época em que esse mal passou a ganhar espaço. Aos desavisados, lembro que o "Aurélio" refere como "em voz alta, bem clara, sem temer consequências", o significado daquele modo de falar.
Mesmo beirando o exagero, serenamente revelo: nada tanto me perturbou, aborreceu e chateou por tanto tempo do que o volume muito alto de aparelhos de som - de ambientes festivos de audiência eclética a festas da vizinhança...
Se uma lista fizesse, daria um filme em longa metragem, pois apareceriam centenas de ocasiões em que o volume desmedido de animações musicais roubou a satisfação de conviver com amigos e de prazerosamente curtir festividades, bailes, encontros de confraternização, jantares et cetera.
Claro, isso a muitos agrada, porém muitos outros resignaram-se ao deplorável exagero, aderindo ao "agora é assim, a gente vai ter que se acostumar..."
Aqui de minha parte, anotem, jamais me acostumarei, nem mesmo até a improvável comemoração de meus cem anos. Mas, se acontecer, será acústico o som a animá-la, acreditem. Ah... considerem-se todos convidados.
Invisível poder declarou obrigatório: todo e qualquer evento tem de ser acompanhado por música barulhenta, indiferente aos decibéis.
À parte as promoções para público específico - shows de rock, baladas e afins, qualquer festa a que se vá manda a ditadura do som alto. Falar? Só aos gritos. E quem entende? Perdi a conta das situações em que fingi captar o que me diziam; igual, talvez, tenha sido o inverso
Quanto desmancha prazer!
Assim como no clima, sempre aparece coisa pior: a barulheira vem sendo potencializada pelo chamado "som automotivo." Até campeonatos disso fazem, li no jornal.
E os adoradores do ruído, nas recentes festas de final de ano, adotaram as praias para os seus funestos rituais, no festival da vulgaridade. Onde eu estava, por exemplo, de noite ou de dia resistir era preciso à passagem de carros com potentíssimo equipamento sonoro. E atacados, nem só os ouvidos, mas também a sensibilidade, dado o incrível mau gosto das "músicas" tocadas.
Volta e meia, menos agressivos no volume, apareciam em veículos grupos exibicionistas para lá de animados, tocando e cantando suas "músicas" favoritas, entremeadas de gracejos pouco simpáticos ao pessoal que andava pela rua.
Todavia, um certo caso chamou-me particular atenção.
Ao sol do final da manhã, em minha direção e mesma calçada, retornavam do mar um homem e três mulheres, gente de 50 e tantos anos.
A ultrapassá-los, em baixa velocidade, uma camioneta, dessas muito caras, novíssima, lotada de rapazes na farra. Espichando o pescoço para fora, um deles gritou ao sujeito que acompanhava as senhoras:
- "Ô! vagabundo!
A essa gratuita grosseria, imaginava do ofendido uma retorsão do tipo: "Vagabundo é teu pai que não te ensinou educação!"
Bem ao contrário, rápido e com presença de espírito, foi ele direto ao ego da turma:
- Onde foi que vocês pegaram emprestada essa camioneta?
* * *
14.01.2010
Uma notícia bacana:
Pois não é que a preocupação com a Civilidade chegou ao Vestibular?! Por feliz coincidência, o assunto de minha crônica anterior foi tema da redação no Vestibular 2010, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
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Um comentário:
Prezado Almiro Zago:
Belos textos. Primeiro,como tens o sangue "italiano" que corre em suas veias e de quem nasceu na Serra, certamente, a Festa da Uva, em Caxias, remete-lhe às lembranças de sua infância. É verdade, hoje, a tecnologia tomou conta de tudo...mas para nós a "Uva" será sempre a rainha da festa. Segundo, tens razão: vivemos sob o autoritarismo do barulho exacerbado. É muita poluição sonora. Poluição de nossas mentes, ouvidos e corações. Parece que as pessoas não conseguem encontrar-se consigo mesmas no silêncio ou na harmonia dos sons. É uma lástima. Terceiro, a civilidade sempre deve ser assunto de pauta na vida de todos. Parabéns pelo tema acolhido no vestibular da UFRGS. Parabéns pelos textos! Uma boa noite a todos!
Um abraço, :)
Suziley.
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