Um
Veio ensolarada, linda, a manhã de sábado.
E há muita gente: uns, como eu, fazem caminhada, outros correm; alguns praticam exercícios; e há os que simplesmente espairecem, mateando. Mas a mulher de camiseta espalhafatosa faz diferente: conversa com o homem de sapatos, calças e camisa de manga longa.
Já é segunda-feira, cedinho, perto das oito, e a mesma mulher aparece exercitando alongamento junto o meu percurso. Vou dando minhas voltas e, numa delas, a figura surge acompanhada pelo mesmo sujeito do sábado, vestido como quem vai ao trabalho. Param num extremo do parque, de pé junto a um banco. Falam e falam ao modo de quem troca confidências...
Passados uns dois dias, vejo repetida a cena. Repetida, outras e outras vezes. Se maiores arroubos afetivos não se vê, não disfarçam o jeito amoroso de uma relação, diria, clandestina, tanto ela, mulher beirando os 50, quanto ele, avizinhado dos sessenta anos.
Ao certo, nem sei quanto tempo isso durou, porém não mais foram vistos os discretos amantes matinais. Todavia, ando frustrado por não saber o final da história. Teriam sido descobertos? Romperam a ligação? Ou não mais precisam escondê-la?
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Dois
É bom, faz bem ter um cachorro, ouço dizer, mas há quem tenha dois ou mais. Também gosto desse animal, ainda que platônica seja minha afeição. Nessa relação entre os amados cães e seus donos, sempre me assalta um porém: eles nos forçam a compartilhar o lado escatológico da coisa. Podem conferir, nas primeiras horas da manhã, eles transformam o parque numa "privada pública" canina.
E como não se pode caminhar olhando para o alto, eu pelo menos não sei, o que se nota, querendo ou não, é a sucessão de cachorrinhos e cachorrões, guiados e observados por suas donas ou donos, a dar vazão às suas necessidades fisiológicas.
Pois numa certa manhã, aquele sujeito deve ter intuído isso: "se o cão pode, eu também posso". Apressadinho, aproximou-se de uns arbustos e abaixou-se para fazer a mesma coisa. Esclareço, deve ter sido, pois não cuidei de confirmar.
Mais não era do que um errante, pacífico e solitário doente mental, sem ninguém a importar-se com ele.
Certamente, muito se poderia escrever sobre o assunto, mas, de minha parte, vai apenas a pergunta: quem é mesmo que leva vida de cachorro?
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Três
Tépida e iluminada, passando vai a manhã de domingo. O jogo de luz e sombra entre o arvoredo e o gramado e as folhas pelo chão compõe telas que Claude Monet e todos os impressionistas teriam sonhado pintar.
Mas a moça magra nada percebe. Sentada a um banco, óculos escuros no rosto imóvel, olha fixamente para frente na direção do laguinho.
E outra vez me aproximo daquele lugar, e a jovem, em posição de estátua, mostra-se alheia ao ambiente poético à sua volta. Seria a depressão fazendo pose para o retrato?
Mais um pouco, e outra vez a moça e o banco no meu repetitivo percurso. Ah..., mas algo mudou. E como! Livre dos óculos escuros, ela brilha e conversa com o rapaz que está de pé, à sua frente, acarinhando a cabeça de seu cachorro grande.
Agora, em minha última volta, observo progressos no animado encontro dos jovens ao tênue sol filtrado pela ramagem das plantas.
Ela continua sentada no mesmo lugar do banco, mas ele acomodou-se ao seu lado. O cão, já não conta.
Evocaria a cena pinturas de Renoir, como aquela da festa no parque de Saint Cloud?
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