Andaram inventando um automóvel que pode ser convertido em avião, tipo de novidade que já não me comove. Diz meu lado cético que teremos mais uma geringonça a poluir no solo e nos ares.
Nunca terei um, mesmo porque jamais se igualaria em fascínio ao meu primeiro carro, o simpático quatro portas bordô, teto creme, motor a dois tempos, alavanca de câmbio no volante. Novo, meu DKW-Vemag fora há anos, mas nunca mais velho do que eu. Porém, era o veículo ao alcance do meu bolso. E oferecia-me o essencial: o valor utilidade. Claro, aquela aparência que transfere status o seguia a muitos centímetros do para-choque traseiro.
Ah... Foram no DKW aquelas primeiras viagens de carro às praias de Torres e Paraíso, e à Praia Azul com direito ao atoleiro de areia para entrar e sair da garagem. E também a Gramado e Porto Alegre, estacionando na Andradas, diante do que fora o Grande Hotel.
Auto valente foi o meu DKW. Em gélidas noites caxienses, aquecia-se à luz das estrelas e amanhecia pedindo água quente para derreter o gelo sobre seu para-brisa. Acreditem, na beira da estrada nunca me deixou; quando muito, negava partida que uns empurrões resolviam.
Uma noite na memória
Entretanto, uma certa viagem iria marcar a história de bravura e resistência do meu, nem tão flamante, DKW-Vemag.
A noite era de fevereiro. Pelas nove e meia, um motivo de grande urgência reclamava a imediata ida do casal à Santa Maria, em percurso de uns 430 quilômetros. Mas à noite, ainda não guiara em estradas, salvo nas partidas, cedinho, antes do amanhecer. (Lembram de “A hora antes do amanhecer”, de W. S. Maughan?)
Pois, ainda pelas pelas ruas de Caxias, um insolente tac-tac apareceu no compartimento do motor. Num posto de gasolina, nada descobriu-se sobre a sua origem. Como no mais o veículo estivesse em ordem, fomos embora pela RS-122, novíssima e bem sinalizada.
Descida a serra, seguíamos tranquilos pelo vale até o susto que nos pregou um degrau no piso, bem na entrada da ponte sobre o Rio Caí. Vencido o solavanco - feio de estremecer, o DKW, seus viajantes e o tac-tac seguiram ilesos. Mais não fora do que reles aviso de desafios sequer imaginados.
O primeiro deles deu sinal já na passagem por São Leopoldo, na forma de ligeira alteração da temperatura do motor, mas que chegou às alturas na periferia da Capital. Só não esquentou o barulhinho.
Vazamento na mangueira do radiador – diagnosticou um frentista na breve parada para reabastecer o veículo. Isso demandaria frequente reposição de água.
Com as luzes de Porto Alegre à esquerda e a trilha sonora do tac-tac de fundo, cruzamos a ponte sobre o Guaíba, rumo à BR-290.
A madrugada iria surpreender-nos em estrada solitária, até do luar esquecida. O olhar o céu estrelado, a prudência proibiu.
E como jovem ao volante não sente sono... íamos em frente ligeirinho, mas nem tanto. Estável o aquecimento do motor e constante o tac-tac, tudo parecia sob controle.
A gillette mágica
Porque o posto programado estava às escuras, cortei dos planos um “pit stop". Talvez faltasse pouco mais de meia hora para o clarear de um dia de verão, quando adentramos ao caminho de São Sepé. E a alguns quilômetros, abriu-se aos faróis a via alargada à espera de asfalto. Todavia, implicante, o indicador de temperatura do motor passou a revelar movimento. O medo não me aconselhou parar. Entretanto, mudou de ideia, passados alguns minutos, ao chegar o ponteiro à marca máxima.
Desci e fui direto levantar o capô do motor, e lá de dentro espalhou-se quente uma nuvem de vapor, bem do jeito que vira em filmes americanos. Mas com a sutil diferença: eu não tinha dublê.
Iríamos ficar a pé?
O jeito era esperar. Esfriadas - minha cabeça e a máquina, outra vez água para o arrefecimento. Mas água só num riacho na baixada, para onde deixei rolar o DKW em ponto morto; morto também parecia o tac-tac.
De uma câmara-de-ar sobressalente, com uma incisão de gillette, única arma a bordo, improvisei um balde para recolher água que levei ao depósito do radiador. Dada partida, o motor, pelo tac-tac imitado, reagiu bem. Foi assim que o sol nascente nos viu, em estrada molhada, alcançar São Sepé. E lá, em precária assistência, mandei enfaixar a mangueira furada.
Treinando para um rally
Santa Maria estaria logo ali, mas dei com a estrada em obras, e havia chovido muito no dia anterior. Nunca vira tanto barro. Veículos, apenas caminhões: uns sendo desatolados por tratores, outros indo e vindo deixando fundos trilhos. E por eles o DKW, firme na segunda marcha e pressão constante no acelerador, avançava.
Aliviando a tensão, vinham trechos com a base para asfaltamento, mas logo apareciam outros “ensaboados”, levando o carro à dança de bêbado, no ritmo inconfundível daquele miserável tac-tac.
Finalmente, o DKW, qual bólido da Fórmula 1 rumo à bandeirada da vitória, venceu o percurso final em chão favorável.
Então, perto das oito horas daquela manhã e vividas intermináveis nove horas de viagem, de nervos abalados e olhos semiabertos, entramos em Santa Maria da Boca do Monte.
Superados os compromissos, levei o DKW a uma oficina para revisão e reparos. Terminado o serviço, perguntou-me o mecânico com ar de espanto:
- A placa do teu auto é de Caxias, mas não vai me contar que tu veio de lá com aquela batidinha que não parava?
Confirmei contando-lhe nos pormenores os obstáculos enfrentados.
Aí veio o lance de suspense da história: só por milagre conseguira a proeza, pois o tac-tac fora produzido pelo movimento do suporte quebrado do alternador que poderia ter caído a qualquer momento.
Por delicadeza, acredito, o sujeito deixou de dizer que eu tivera mais sorte do que juízo.
Começando a escrever este texto, veio-me à lembrança um dito popular, mais ou menos assim: “carro velho dá somente duas alegrias ao seu dono: uma quando o compra, outra quando o vende”.
Nego-me a autocensura de deletar a frase anterior, porém, sinto roer-me o remorso por tamanha ingratidão para com meu DKW-Vemag, 1962, o carro velho das três alegrias.
Mas como nem tudo pode dar certo, o famoso Rally Paris-Dakar daquele ano, por falta de patrocínio ao piloto, perderia um grande competidor...
* Título inspirado no filme “Se meu Fusca falasse”.
3 comentários:
Hehehe...que lindo texto, como todos que muito bem escreve amigo Almiro Zago. O homem e a sua paixão pelo carro. Bela história que prende a nossa atenção do inicio ao fim. Parabéns!!! Um bom dia, uma boa semana a você e sua família :)
Com grande satisfação seguimos acompanhando sua admirável produção literária,tanto o que lemos no blog quanto no seu livro "Mínimas Confissões",que ninguém deveria deixar de ler
Saudações
Pedro e Clara Albath
Olá meu nome é Carlos,sou estudante num turno e trabalho em outro,em Caxias do Sul.
Li seu livro Mínimas Confissões e gostei muito dele. A leitura me ajudou a entender melhor
a história de minha cidade,de meu país,me deu grandes exemplos e ainda me divertiu
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