quinta-feira, 14 de agosto de 2014

De mal com o sol

Almiro Zago

O rosto no espelho examinei como se pintasse o autorretrato. Afinal, o momento era de apertar o tubinho da substância que iria corromper meu visual por certo tempo. Se a noite era feia e fria, torcia para que a tanto não chegassem minhas feições.

Paciencioso paciente, segui a prescrição médica e, noite após noite, minha face, o nariz e a testa receberam a pomada, cujo princípio ativo, seletivamente, deveria agir contra as afecções da pele pré-carcinoma.

Então, psicologicamente preparado, sabia das manchas vermelhas, seguidas de ulcerações, para, ao final, resultar na eliminação das “sementes” de câncer de pele.

Essa aborrecida situação, e tudo que ainda viria, calava em mim como castigo do sol por minha tez clara e omissão de cuidados contra seus raios de efeito cumulativo, ao longo da vida.  Por certo, a carga de risco foi amenizando a contar dos primeiros anos 1990, na época em que aquele “bichinho” deu avisos de que me seguiria vida afora.

Alego em defesa ter vindo da era da ignorância sobre os malefícios da indiscriminada exposição aos raios UVA e UVB. Como se isso fosse pouco, ainda havia quem pelo corpo passasse bronzeador para amorenar-se rapidamente.

Mas hoje, a despeito da abundância de informações disponíveis, ainda se vê muita gente desligada, indiferente aos perigos que a derme pode esconder.

Meia dúzia de alterações, ou pouco mais, viriam colorir meu semblante, dizia minha expectativa. O desmentido trouxe manchas e marcas às dezenas, numa invasão de figuras de imprecisas formas em vermelho, vermelho arroxeado, como se um irônico Salvador Dali, em momentos de mau humor, se divertisse a testar tons rubros numa tela, no caso, a minha cara.

Mesmo assim, salvo eventos pontuais, andei de bem com esse processo, e em minhas andanças só me lembraria da sofrível aparência facial por algum olhar indiscreto.

Cogitei máscara para sair à rua, mas, temendo ser confundido com determinados manifestantes, desisti.

Em tom franco, fui esclarecendo às pessoas amigas, aos conhecidos com quem me encontrasse. Já nos cumprimentos, percebia o alívio das mulheres, ao alertar: sem beijinhos!...

Persisto na esperança de medalha por superar a prova das insistentes ardências e intermitentes coceiras. Imaginem como foi duro conter a tentadora vontade de coçar, de arranhar!...

Em semelhante clima, acompanhei a Copa do Mundo, mas por horas me esquecia das feições desfiguradas quando via as imagens de horrores em Gaza.

Por várias vezes transitei à beira de crise de identidade em ambientes espelhados, porque o instantâneo da memória fotográfica parecia em dúvida ao reconhecer a imagem refletida.

Ninguém pense em exagero. Tive 53 noites de desamorosos encontros com o mesmo frio espelho na tarefa de passar o medicamento sobre as manchas que iam ganhando feridas secas, enquanto no íntimo rondavam sensações sadomasoquistas.

Soube das cores do alívio ao chegar à última aplicação de pomada.

Passados alguns dias, tal qual folhas no outono caíam as casquinhas da cútis ressequida. Assim, pude exibir aspecto facial limpo nos abraços do Dia dos Pais, faceiro porque, após passagem pela estação feiura, recuperei minha imagem de sempre. Nunca me sentira tão bonito...

A transitória perda estética, as ardências e coceiras, a obstinação compensou, disse o Dr. Bartelle, pois por um bom tempo meu rosto ficará livre de carcinomas.

Ah, deixei de postar foto no “Face” sabendo que ninguém mais controla o que na rede cai, e seria terrível se minha feia imagem passageira vagasse por aí pela eternidade.

Depois, ficaria sem assunto para a crônica.

Crônica escrita em 11.08.2014.




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