Almiro
Zago
O
rosto no espelho examinei como se pintasse o autorretrato. Afinal, o momento
era de apertar o tubinho da substância que iria corromper meu visual por certo
tempo. Se a noite era feia e fria, torcia para que a tanto não chegassem minhas
feições.
Paciencioso
paciente, segui a prescrição médica e, noite após noite, minha face, o nariz e
a testa receberam a pomada, cujo princípio ativo, seletivamente, deveria agir contra
as afecções da pele pré-carcinoma.
Então,
psicologicamente preparado, sabia das manchas vermelhas, seguidas de
ulcerações, para, ao final, resultar na eliminação das “sementes” de câncer de
pele.
Essa
aborrecida situação, e tudo que ainda viria, calava em mim como castigo do sol por
minha tez clara e omissão de cuidados contra seus raios de efeito cumulativo,
ao longo da vida. Por certo, a
carga de risco foi amenizando a contar dos primeiros anos 1990, na época em que
aquele “bichinho” deu avisos de que me seguiria vida afora.
Alego
em defesa ter vindo da era da ignorância sobre os malefícios da indiscriminada
exposição aos raios UVA e UVB. Como se isso fosse pouco, ainda havia quem pelo
corpo passasse bronzeador para amorenar-se rapidamente.
Mas
hoje, a despeito da abundância de informações disponíveis, ainda se vê muita
gente desligada, indiferente aos perigos que a derme pode esconder.
Meia
dúzia de alterações, ou pouco mais, viriam colorir meu semblante, dizia minha
expectativa. O desmentido trouxe manchas e marcas às dezenas, numa invasão de
figuras de imprecisas formas em vermelho, vermelho arroxeado, como se um
irônico Salvador Dali, em momentos de mau humor, se divertisse a testar tons
rubros numa tela, no caso, a minha cara.
Mesmo
assim, salvo eventos pontuais, andei de bem com esse processo, e em minhas
andanças só me lembraria da sofrível aparência facial por algum olhar indiscreto.
Cogitei
máscara para sair à rua, mas, temendo ser confundido com determinados
manifestantes, desisti.
Em
tom franco, fui esclarecendo às pessoas amigas, aos conhecidos com quem me
encontrasse. Já nos cumprimentos, percebia o alívio das mulheres, ao alertar:
sem beijinhos!...
Persisto
na esperança de medalha por superar a prova das insistentes ardências e intermitentes
coceiras. Imaginem como foi duro conter a tentadora vontade de coçar, de
arranhar!...
Em
semelhante clima, acompanhei a Copa do Mundo, mas por horas me esquecia das
feições desfiguradas quando via as imagens de horrores em Gaza.
Por
várias vezes transitei à beira de crise de identidade em ambientes espelhados,
porque o instantâneo da memória fotográfica parecia em dúvida ao reconhecer a imagem
refletida.
Ninguém
pense em exagero. Tive 53 noites de desamorosos encontros com o mesmo frio espelho
na tarefa de passar o medicamento sobre as manchas que iam ganhando feridas secas,
enquanto no íntimo rondavam sensações sadomasoquistas.
Soube
das cores do alívio ao chegar à última aplicação de pomada.
Passados
alguns dias, tal qual folhas no outono caíam as casquinhas da cútis ressequida.
Assim, pude exibir aspecto facial limpo nos abraços do Dia dos Pais, faceiro
porque, após passagem pela estação feiura, recuperei minha imagem de sempre. Nunca
me sentira tão bonito...
A
transitória perda estética, as ardências e coceiras, a obstinação compensou,
disse o Dr. Bartelle, pois por um bom tempo meu rosto ficará livre de carcinomas.
Ah,
deixei de postar foto no “Face” sabendo que ninguém mais controla o que na rede
cai, e seria terrível se minha feia imagem passageira vagasse por aí pela
eternidade.
Depois,
ficaria sem assunto para a crônica.
Crônica escrita em 11.08.2014.
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