Camila Canali Doval
Quem não tem curiosidade mórbida? Os psiquiatras andam jogando em nossa cara que somos todos doentes ao acompanhar com tamanha obsessão o passo a passo da história de Isabella. Eu não conhecia a Isabella. Eu nunca vi a Isabella. Se a Isabella passasse na minha frente, seria apenas mais uma menina passando na minha frente, como qualquer outra. Acontece que, como os psiquiatras fizeram com a minha “doença”, alguém jogou a Isabella na minha cara. E eu não estou nada disposta a esquecê-la.
Quero saber, sim, o que fizeram com a Isabella. Quero saber quem fez, como fez e por que fez. Quero todos os detalhes. Quero as motivações. Quero as provas. As fotos. As marcas de sangue. Quem apertou. Quem bateu. Quem jogou. Quem planejou. Quero saber direitinho quem são os tais de Alexandre e Anna Jatobá. Quero saber que tipo de família eles têm. Como foram criados. O que foi feito da sua educação. Quero saber onde eles estudaram e quais eram as suas notas. Quero depoimentos de professores e colegas. De vizinhos. De motoristas de táxi. Do diabo a quatro. Quero escarafunchar a vida deles até a exaustão. A exaustão coletiva. E o povo que se plante em frente aos edifícios e delegacia. O povo que grite, que xingue, que jogue pedras. O povo que venda pipocas e distribua santinhos. Fizeram disso um circo ou não? E foi o povo, por acaso? O povo que grite. Eu apóio. Não acho a Isabella a criança mais importante do mundo. Eu sei dos pretos pobres das favelas que não aparecem na televisão. Eu sei que um milhão de crianças teve fins piores que o dela. Eu sei que algumas nunca têm fim. Mas agora eu quero saber da Isabella. Só dela. Quero saber obsessivamente. Quero saber até parar de sentir. Como deve ser.
Eu não tinha nada a ver com nada disso, mas jogaram a Isabella pela janela e também na minha cara. Agora eu quero saber. Quero saciar a minha morbidez. Eu exijo o último capítulo.
terça-feira, 29 de abril de 2008
A Mecânica da Obsessão
terça-feira, 22 de abril de 2008
As tortuosas vias azuis
Almiro Zago
Em Mínimas confissões, crônica que veio a emprestar seu título a uma coletânea, falei sobre "defeitos de fabricação", em que acabei admitindo pelos menos dois deles. Bem, depois disso, não sem um certo desconforto, decidi declarar,
francamente, outro defeito de origem, embora fosse quase de domínio público. Seria isso uma espécie de terapia.
Quem já não ouviu algo do tipo: "o que escrevo, eu e Deus entendemos, mas, às vezes, somente Ele sabe"? Pois a vida fez de mim um propagador dessa frase, invariavelmente pronunciada diante do embaraço de situações concretas.
Ainda que me digam mil vezes que muita gente têm caligrafia igual à minha, jamais me sentirei consolado. Levarei à tumba (ao crematório?) a desdita de ter letra feia. Ao longo dos anos, em vão esperei escutar palavras verdadeiramente confortantes para o meu ego, todavia, mais não escutei, nem me contaram, do que: "a letra é feia, mas tem conteúdo", "que pena que a letra não ajuda", "apesar da caligrafia é um sujeito inteligente".
Por favor, ninguém pense em jogar a culpa sobre as professoras que me alfabetizaram. Coitadas. As estratégias pedagógicas ao alcance elas esgotaram, porém minha mão direita e meus dedos recusaram-se a cooperar. Durante os cursos que freqüentei, adquirida alguma familiaridade, professores e colegas chegavam a entender os meus escritos.
Houve uma exceção, é verdade. Um professor do primeiro ano do Curso de Direito devolveu-me a minha primeira prova encimada por um quatro, contrariando a expectativa de nota sete ou oito. Ao corrigi-la, havia ele simplesmente desistido de ler a redação que valeria quatro pontos. Feita, pessoalmente, a devida tradução, vi mais três pontos e meio acrescidos ao resultado. A partir de então, passei a mascarar o problema com letra de imprensa em testes, exames ou cadastros.
A despeito da minha indisfarçável frustração, sempre gostei de caligrafia bonita, de fácil compreensão. Ao meu olhar, um texto assim é uma verdadeira obra de arte. E admirável seu autor.
Sei, também, de meus sérios rivais no concurso de caligrafia mais feia e ilegível. Perdi a conta das tantas receitas médicas decifradas em farmácia. E houve casos insolúveis em que precisei retornar ao médico para resolver o problema.
Há, é certo, segundo minha assessoraria de artes, sutil diferença entre letra feia e ilegível. Numa só escrita podem estar presentes os dois qualificativos. Porém da ilegível periga surgir belo resultado estético, como se pintura moderna fosse.
Pior que tudo, letra feia é mais fácil de falsificar, o que já me aconteceu.
Acho que alguma força sobrenatural deve ter fortalecido o meu espírito de superação na adolescência e passagem para juventude. É que cheguei a manter razoável volume de correspondência sem aflição pelo aspecto da minha escrita. Claro, tive de neutralizar os ouvidos a duras expressões como "teus garranchos", ou "teus hieróglifos", quando suavizavam.
Lembro-me de ter trocado muitas cartas com um amigo italiano que fora morar em outra cidade. Suas respostas, invariavelmente, principiavam mais ou menos deste modo: "Depois de intermináveis horas de trabalho, aplicando técnicas de Champolion", consegui ler o que me escreveste." Intrigante era que ele chegara ao Brasil aos quatorze anos, aprendera com facilidade o português, escrevia bem e com letra invejável.
Contornando o vexame, há muito tempo, a máquina de escrever e, depois, o computador, têm sido meus aliados, mesmo contrariando o bom-tom que recomenda sejam de próprio punho as cartas.
Como se não bastassem os naturais aborrecimentos que a deficiência traz, volta e meia vem a mídia publicar que a personalidade de alguém pode ser conhecida pelos seus manuscritos. Ainda por cima, dizem que a escrita feia revelaria diversos transtornos emocionais de seu autor. Isso é uma perversidade. Onde ficou o politicamente correto?
Cansei de exercícios de caligrafia. Quando vou escrever algo menos relevante, uma bobagem, coisa rara, penso, até que sai razoável. Mas se devo concentrar-me no conteúdo, saem bem as três ou quatro primeiras palavras, já o resto... É sempre desse jeito, quer esteja calmo ou ansioso, embora seja torturante escrever em situações em que domina a emoção. E esse drama vivenciei recentemente quando da sessão de autógrafos do lançamento de meu livro, Mínimas confissões.
Acalentava o desejo de escrever algo criativo, especial para cada um dos meus leitores. Mas ao terminar, à minha frente apareciam tortuosas e ilegíveis vias azuis traçadas pela errante caneta. Desisti de um "recall" do livro ao dar-me conta de que só por milagre poderia fazer melhor.
Quem sabe a assistência técnica possa decifrar as dedicatórias.
Em Mínimas confissões, crônica que veio a emprestar seu título a uma coletânea, falei sobre "defeitos de fabricação", em que acabei admitindo pelos menos dois deles. Bem, depois disso, não sem um certo desconforto, decidi declarar,
francamente, outro defeito de origem, embora fosse quase de domínio público. Seria isso uma espécie de terapia.
Quem já não ouviu algo do tipo: "o que escrevo, eu e Deus entendemos, mas, às vezes, somente Ele sabe"? Pois a vida fez de mim um propagador dessa frase, invariavelmente pronunciada diante do embaraço de situações concretas.
Ainda que me digam mil vezes que muita gente têm caligrafia igual à minha, jamais me sentirei consolado. Levarei à tumba (ao crematório?) a desdita de ter letra feia. Ao longo dos anos, em vão esperei escutar palavras verdadeiramente confortantes para o meu ego, todavia, mais não escutei, nem me contaram, do que: "a letra é feia, mas tem conteúdo", "que pena que a letra não ajuda", "apesar da caligrafia é um sujeito inteligente".
Por favor, ninguém pense em jogar a culpa sobre as professoras que me alfabetizaram. Coitadas. As estratégias pedagógicas ao alcance elas esgotaram, porém minha mão direita e meus dedos recusaram-se a cooperar. Durante os cursos que freqüentei, adquirida alguma familiaridade, professores e colegas chegavam a entender os meus escritos.
Houve uma exceção, é verdade. Um professor do primeiro ano do Curso de Direito devolveu-me a minha primeira prova encimada por um quatro, contrariando a expectativa de nota sete ou oito. Ao corrigi-la, havia ele simplesmente desistido de ler a redação que valeria quatro pontos. Feita, pessoalmente, a devida tradução, vi mais três pontos e meio acrescidos ao resultado. A partir de então, passei a mascarar o problema com letra de imprensa em testes, exames ou cadastros.
A despeito da minha indisfarçável frustração, sempre gostei de caligrafia bonita, de fácil compreensão. Ao meu olhar, um texto assim é uma verdadeira obra de arte. E admirável seu autor.
Sei, também, de meus sérios rivais no concurso de caligrafia mais feia e ilegível. Perdi a conta das tantas receitas médicas decifradas em farmácia. E houve casos insolúveis em que precisei retornar ao médico para resolver o problema.
Há, é certo, segundo minha assessoraria de artes, sutil diferença entre letra feia e ilegível. Numa só escrita podem estar presentes os dois qualificativos. Porém da ilegível periga surgir belo resultado estético, como se pintura moderna fosse.
Pior que tudo, letra feia é mais fácil de falsificar, o que já me aconteceu.
Acho que alguma força sobrenatural deve ter fortalecido o meu espírito de superação na adolescência e passagem para juventude. É que cheguei a manter razoável volume de correspondência sem aflição pelo aspecto da minha escrita. Claro, tive de neutralizar os ouvidos a duras expressões como "teus garranchos", ou "teus hieróglifos", quando suavizavam.
Lembro-me de ter trocado muitas cartas com um amigo italiano que fora morar em outra cidade. Suas respostas, invariavelmente, principiavam mais ou menos deste modo: "Depois de intermináveis horas de trabalho, aplicando técnicas de Champolion", consegui ler o que me escreveste." Intrigante era que ele chegara ao Brasil aos quatorze anos, aprendera com facilidade o português, escrevia bem e com letra invejável.
Contornando o vexame, há muito tempo, a máquina de escrever e, depois, o computador, têm sido meus aliados, mesmo contrariando o bom-tom que recomenda sejam de próprio punho as cartas.
Como se não bastassem os naturais aborrecimentos que a deficiência traz, volta e meia vem a mídia publicar que a personalidade de alguém pode ser conhecida pelos seus manuscritos. Ainda por cima, dizem que a escrita feia revelaria diversos transtornos emocionais de seu autor. Isso é uma perversidade. Onde ficou o politicamente correto?
Cansei de exercícios de caligrafia. Quando vou escrever algo menos relevante, uma bobagem, coisa rara, penso, até que sai razoável. Mas se devo concentrar-me no conteúdo, saem bem as três ou quatro primeiras palavras, já o resto... É sempre desse jeito, quer esteja calmo ou ansioso, embora seja torturante escrever em situações em que domina a emoção. E esse drama vivenciei recentemente quando da sessão de autógrafos do lançamento de meu livro, Mínimas confissões.
Acalentava o desejo de escrever algo criativo, especial para cada um dos meus leitores. Mas ao terminar, à minha frente apareciam tortuosas e ilegíveis vias azuis traçadas pela errante caneta. Desisti de um "recall" do livro ao dar-me conta de que só por milagre poderia fazer melhor.
Quem sabe a assistência técnica possa decifrar as dedicatórias.
quinta-feira, 10 de abril de 2008
A Janela
Karen Scopel
O celular tremia sobre a mesa, era ela, a terceira vez em um intervalo de poucos minutos, ele atendia: “Eu não preciso de ti, não gosto de ninguém me controlando. Chega Ana, pára de chorar, não quero mais falar contigo agora, mais tarde a gente conversa”. Recolocava o celular sobre a mesa e esperava que ela chamasse outra vez, todos no restaurante já haviam percebido. Tocava novamente. A moça do outro lado da linha, que não o deixava almoçar, devia estar desesperada, se descabelando, com a voz embargada pedindo que ele lhe desse uma chance, que não a deixasse assim. Era difícil imaginar o que teria de tão especial o rapaz que atendia àqueles telefonemas, não chamava a atenção por sua aparência, os cabelos desgrenhados, como se tivesse acabado de passar por um vendaval, os ombros curvados, fazendo com que aparentasse mais idade do que realmente devia ter, e os olhos, esbugalhados, dava para sentir o vazio que vinha de dentro deles, além disso, era estranho o modo dele falar ao telefone, alto e claro, como se quisesse que todas as pessoas ao redor fossem suas testemunhas. Um pouco antes de o telefone tocar insistentemente, ele ligou para Ana, pediu que ela reconsiderasse e que eles retomassem o namoro, ela, mais uma vez, lhe disse que gostava de outro e tudo entre eles estava acabado, então, ele programou o celular para despertar logo depois e assim sucessivamente, atendendo e tentando convencer o fantasma com quem falava de que o deixasse em paz. Ana era simpática e extrovertida, bem diferente dele, difícil compreender que tenham permanecido juntos por quase dois anos, morava com uma amiga e um gato, que ele não gostava, trabalhava como caixa num supermercado, tinha os cabelos negros e compridos que usava, quase sempre, num rabo de cavalo, as mãos bem cuidadas e as unhas pintadas com esmaltes coloridos. Adorava sair com as amigas, ao contrário dele, que não tinha amigos e se satisfazia ao fazer parecer que os tinha. Ele vivia num apartamento pequeno, no décimo primeiro andar de um prédio sombrio, com janelas estreitas e longos corredores. Saíam muito pouco, ele preferia assistir filmes na TV.
Após o almoço, ele não conseguiu voltar ao trabalho, foi para casa, sentou-se de frente para a janela, a vista dava para o paredão cinza do prédio ao lado. Naquela noite, como nas anteriores, ligou para ela, uma, duas vezes e nada, a colega de apartamento repetia “Ela não está.”, como se fosse uma gravação. Ele, então, ficava a imaginá-la com outro. Será que este outro gostava do gato ou ela tinha se desfeito dele? Não, ela não faria isso, provavelmente ele teria um cachorro e todos seriam felizes. Sua angústia era tanta que ele sentia vontade de gritar, mas, impossível. Tinha vontade de sair dali, se mudar, ao invés disso ia todos os dias ao supermercado, vivia um constante jogo de cabo de guerra consigo mesmo, um lado lhe indicando para ir ao encontro dela enquanto outro tentava impedi-lo, o lado vencedor era sempre o que o levava até lá, ele fazia suas compras, às vezes apenas um sabonete, e passava no caixa ao lado. Um dia , chegou mais tarde, Ana já não estava, deu meia volta e próximo à porta viu-a deixando o elevador, sorridente e apressada, foi atrás dela, chegando à rua, ela correu para um homem que a esperava, foi um abraço de dar inveja, um abraço grande, daqueles em que se fecham os olhos e cola-se o corpo no corpo do outro, foi desesperador, ele ficou ali, as pessoas saíam e esbarravam nele, parecia ter-se enraizado, petrificado pelo que acabara de ver, talvez tenha permanecido assim somente alguns instantes, talvez, horas, os dois já haviam partido abraçados e ele continuava a vê-los, mesmo em casa, sentado de frente para a parede cinza. Mais tarde, escreveu a primeira carta, na manhã seguinte colocou-a no correio e assim passou a fazer nos quinze dias que se sucederam, chegava do trabalho, sentava em frente à janela e escrevia para Ana, não teve resposta para nenhuma delas, na verdade, ela sequer as leu, foram todas para o lixo. Se tivesse lido. Ele sempre planejou tudo, sua vida já estava toda esquematizada, Ana desorganizou tudo, então, foi mais fácil deixar o trabalho, parar de lavar as roupas, em dois dias seu apartamento estava irreconhecível. Ela não o via mais, então, a barba podia ficar por fazer e a falta de banho não seria notada por mais ninguém.
Ana ficou sabendo quando o policial lhe entregou a última carta. Se tivesse lido as outras, saberia que todas traziam escritas as mesmas palavras: “Estarei te esperando, no último sábado deste mês, queria estar contigo, lembra o que vamos comemorar?” No dia em que começou a escrevê-las resolveu que Ana decidiria a sua vida, assim como a havia mudado quando se conheceram. Para aquele encontro, arrumou a casa, tomou banho, fez a barba e penteou os cabelos cuidadosamente, a noite veio e ele esperou o quanto pôde, a janela parecia estar mais estreita e ventava muito.
26.03.2008
O celular tremia sobre a mesa, era ela, a terceira vez em um intervalo de poucos minutos, ele atendia: “Eu não preciso de ti, não gosto de ninguém me controlando. Chega Ana, pára de chorar, não quero mais falar contigo agora, mais tarde a gente conversa”. Recolocava o celular sobre a mesa e esperava que ela chamasse outra vez, todos no restaurante já haviam percebido. Tocava novamente. A moça do outro lado da linha, que não o deixava almoçar, devia estar desesperada, se descabelando, com a voz embargada pedindo que ele lhe desse uma chance, que não a deixasse assim. Era difícil imaginar o que teria de tão especial o rapaz que atendia àqueles telefonemas, não chamava a atenção por sua aparência, os cabelos desgrenhados, como se tivesse acabado de passar por um vendaval, os ombros curvados, fazendo com que aparentasse mais idade do que realmente devia ter, e os olhos, esbugalhados, dava para sentir o vazio que vinha de dentro deles, além disso, era estranho o modo dele falar ao telefone, alto e claro, como se quisesse que todas as pessoas ao redor fossem suas testemunhas. Um pouco antes de o telefone tocar insistentemente, ele ligou para Ana, pediu que ela reconsiderasse e que eles retomassem o namoro, ela, mais uma vez, lhe disse que gostava de outro e tudo entre eles estava acabado, então, ele programou o celular para despertar logo depois e assim sucessivamente, atendendo e tentando convencer o fantasma com quem falava de que o deixasse em paz. Ana era simpática e extrovertida, bem diferente dele, difícil compreender que tenham permanecido juntos por quase dois anos, morava com uma amiga e um gato, que ele não gostava, trabalhava como caixa num supermercado, tinha os cabelos negros e compridos que usava, quase sempre, num rabo de cavalo, as mãos bem cuidadas e as unhas pintadas com esmaltes coloridos. Adorava sair com as amigas, ao contrário dele, que não tinha amigos e se satisfazia ao fazer parecer que os tinha. Ele vivia num apartamento pequeno, no décimo primeiro andar de um prédio sombrio, com janelas estreitas e longos corredores. Saíam muito pouco, ele preferia assistir filmes na TV.
Após o almoço, ele não conseguiu voltar ao trabalho, foi para casa, sentou-se de frente para a janela, a vista dava para o paredão cinza do prédio ao lado. Naquela noite, como nas anteriores, ligou para ela, uma, duas vezes e nada, a colega de apartamento repetia “Ela não está.”, como se fosse uma gravação. Ele, então, ficava a imaginá-la com outro. Será que este outro gostava do gato ou ela tinha se desfeito dele? Não, ela não faria isso, provavelmente ele teria um cachorro e todos seriam felizes. Sua angústia era tanta que ele sentia vontade de gritar, mas, impossível. Tinha vontade de sair dali, se mudar, ao invés disso ia todos os dias ao supermercado, vivia um constante jogo de cabo de guerra consigo mesmo, um lado lhe indicando para ir ao encontro dela enquanto outro tentava impedi-lo, o lado vencedor era sempre o que o levava até lá, ele fazia suas compras, às vezes apenas um sabonete, e passava no caixa ao lado. Um dia , chegou mais tarde, Ana já não estava, deu meia volta e próximo à porta viu-a deixando o elevador, sorridente e apressada, foi atrás dela, chegando à rua, ela correu para um homem que a esperava, foi um abraço de dar inveja, um abraço grande, daqueles em que se fecham os olhos e cola-se o corpo no corpo do outro, foi desesperador, ele ficou ali, as pessoas saíam e esbarravam nele, parecia ter-se enraizado, petrificado pelo que acabara de ver, talvez tenha permanecido assim somente alguns instantes, talvez, horas, os dois já haviam partido abraçados e ele continuava a vê-los, mesmo em casa, sentado de frente para a parede cinza. Mais tarde, escreveu a primeira carta, na manhã seguinte colocou-a no correio e assim passou a fazer nos quinze dias que se sucederam, chegava do trabalho, sentava em frente à janela e escrevia para Ana, não teve resposta para nenhuma delas, na verdade, ela sequer as leu, foram todas para o lixo. Se tivesse lido. Ele sempre planejou tudo, sua vida já estava toda esquematizada, Ana desorganizou tudo, então, foi mais fácil deixar o trabalho, parar de lavar as roupas, em dois dias seu apartamento estava irreconhecível. Ela não o via mais, então, a barba podia ficar por fazer e a falta de banho não seria notada por mais ninguém.
Ana ficou sabendo quando o policial lhe entregou a última carta. Se tivesse lido as outras, saberia que todas traziam escritas as mesmas palavras: “Estarei te esperando, no último sábado deste mês, queria estar contigo, lembra o que vamos comemorar?” No dia em que começou a escrevê-las resolveu que Ana decidiria a sua vida, assim como a havia mudado quando se conheceram. Para aquele encontro, arrumou a casa, tomou banho, fez a barba e penteou os cabelos cuidadosamente, a noite veio e ele esperou o quanto pôde, a janela parecia estar mais estreita e ventava muito.
26.03.2008
terça-feira, 8 de abril de 2008
Encontro histórico
E os Mecânicos finalmente se encontraram, em quase sua totalidade, no Applause Café, ontem, em um delicioso happy hour.
Muita conversa filosófica, literária, cinematográfica, humana e até fofocas, regada ao chopp-promo de R$ 2,10. Hummm...
E o próximo já está marcadíssimo para 5 de maio, aniversário de 2 anos deste grupo de amigos amantes do escrever e do jogar alegre conversa fora.
Alguém mais se habilita?
Muita conversa filosófica, literária, cinematográfica, humana e até fofocas, regada ao chopp-promo de R$ 2,10. Hummm...
E o próximo já está marcadíssimo para 5 de maio, aniversário de 2 anos deste grupo de amigos amantes do escrever e do jogar alegre conversa fora.
Alguém mais se habilita?
terça-feira, 1 de abril de 2008
Everything is gonna change my world
Camila Canali Doval
Muitas coisas me modificam. Eu sei, muitas coisas modificam muitas pessoas. Mas obviamente algumas coisas modificam cada pessoa. Músicas modificam pessoas. Nem todas as músicas modificam todas as pessoas. Há músicas que me modificam muito. Há músicas que me modificam em determinados momentos e para sempre.
Hoje eu viajei até Viamão ouvindo músicas. Entre elas, O Caderno, do Toquinho. Sabe qual é?
Sou eu que vou seguir você
Do primeiro rabisco
Até o be-a-bá.
Em todos os desenhos
Coloridos vou estar
A casa, a montanha
Duas nuvens no céu
E um sol a sorrir no papel...
Ia tudo muito bem, aquela nostalgia clássica de quem foi criança nos anos 80, relembrando a capa do disquinho e a sensação de ouvir aquela voz gostosa falando alguma coisa sobre um tal de caderninho, que bem parecia com os meus caderninhos, mas eu não tinha consciência ainda para saber que eram exatamente os meus caderninhos.
Caderninhos que acompanharam a minha vida inteira, repletos de anotações coloridas, de desabafos escuros, de frases copiadas, de poesias inventadas, de segredos reinventados em códigos que até hoje eu sei.
Que eu nunca esquecerei.
Mas foi então que o Toquinho sussurrou com sua voz doce o trecho mais cruel que provavelmente ele já sussurrou na vida. E me doeu perceber que ele sempre sussurrara tal maldade em meus ouvidos e eu escutava, ingênua e crédula, julgando serem apenas palavras bobas de uma canção lúdica de criança, mas era e sempre será uma centelha de vida, em verdade, era o anúncio, era o aviso, era, de certa forma, o meu veredicto, que só eu ainda não conhecia e que só o Toquinho tinha coragem de pronunciar.
Sou eu que vou ser seu amigo
Vou lhe dar abrigo
Se você quiser
Quando surgirem
Seus primeiros raios de mulher
A vida se abrirá
Num feroz carrossel
E você vai rasgar meu papel...
Rasguei muitos papéis sem lembrar que eles estavam destinados a isso. Sim, os cadernos, os meus caderninhos, sempre foram o meu abrigo, a minha forma de escapar e de entender o carrossel que me engolia. Eu ia me modificando e os cadernos iam se modificando, os antigos modificavam os novos, eu ia modificando os cadernos e é óbvio que os cadernos, folha a folha, linha a linha, iam modificando a mim.
Chorei tanto hoje, no ônibus, escutando novamente aquela voz sussurrada, aquele prenúncio da futura mulher, que não é mais um futuro, que sou eu, feita de sussurros de carrossel de cadernos e de milhões de folhas rabiscadas rasgadas inteiras molhadas publicadas queridas queridas queridas.
A vida não é um brinquedo inocente. A vida nos deixa tontos. A vida é o que o Toquinho me mostrou que seria e eu fico feliz de não ter entendido antes. Ele nem queria que eu entendesse. Ele queria apenas acariciar o que eu era. Ele queria, apenas, louvar o que eu seria, antes de todo mundo. Ele queria, quem sabe, como eu também quero, que um dia alguém se soubesse modificado por suas palavras.
E os meus cadernos seguem comigo. Essa música desenvolveu em mim um absurdo colecionismo. Ele me pedia para não esquecê-lo em um canto qualquer e eu jamais poderia mesmo fazê-lo. Ainda tenho os meus cadernos. Fico angustiada cada vez que penso nas traças e no mofo que podem estar os consumindo. Não tenho coragem de abri-los. Não quero me ver corroída. Não quero me ter esquecida. Posso fazer terapia para perder o medo insuportável da morte, para aprender a conviver com ele, mas não posso fazer terapia para esquecer o que sou. Meus cadernos são eu. Desculpe. Mas eles são eu.
E eu sinceramente acredito que um dia as pequenas mãozinhas dos meus filhos irão folheá-los. E lê-los irá modificá-los. E vê-los ler fará de mim, então, diferente.
Muitas coisas me modificam. Eu sei, muitas coisas modificam muitas pessoas. Mas obviamente algumas coisas modificam cada pessoa. Músicas modificam pessoas. Nem todas as músicas modificam todas as pessoas. Há músicas que me modificam muito. Há músicas que me modificam em determinados momentos e para sempre.
Hoje eu viajei até Viamão ouvindo músicas. Entre elas, O Caderno, do Toquinho. Sabe qual é?
Sou eu que vou seguir você
Do primeiro rabisco
Até o be-a-bá.
Em todos os desenhos
Coloridos vou estar
A casa, a montanha
Duas nuvens no céu
E um sol a sorrir no papel...
Ia tudo muito bem, aquela nostalgia clássica de quem foi criança nos anos 80, relembrando a capa do disquinho e a sensação de ouvir aquela voz gostosa falando alguma coisa sobre um tal de caderninho, que bem parecia com os meus caderninhos, mas eu não tinha consciência ainda para saber que eram exatamente os meus caderninhos.
Caderninhos que acompanharam a minha vida inteira, repletos de anotações coloridas, de desabafos escuros, de frases copiadas, de poesias inventadas, de segredos reinventados em códigos que até hoje eu sei.
Que eu nunca esquecerei.
Mas foi então que o Toquinho sussurrou com sua voz doce o trecho mais cruel que provavelmente ele já sussurrou na vida. E me doeu perceber que ele sempre sussurrara tal maldade em meus ouvidos e eu escutava, ingênua e crédula, julgando serem apenas palavras bobas de uma canção lúdica de criança, mas era e sempre será uma centelha de vida, em verdade, era o anúncio, era o aviso, era, de certa forma, o meu veredicto, que só eu ainda não conhecia e que só o Toquinho tinha coragem de pronunciar.
Sou eu que vou ser seu amigo
Vou lhe dar abrigo
Se você quiser
Quando surgirem
Seus primeiros raios de mulher
A vida se abrirá
Num feroz carrossel
E você vai rasgar meu papel...
Rasguei muitos papéis sem lembrar que eles estavam destinados a isso. Sim, os cadernos, os meus caderninhos, sempre foram o meu abrigo, a minha forma de escapar e de entender o carrossel que me engolia. Eu ia me modificando e os cadernos iam se modificando, os antigos modificavam os novos, eu ia modificando os cadernos e é óbvio que os cadernos, folha a folha, linha a linha, iam modificando a mim.
Chorei tanto hoje, no ônibus, escutando novamente aquela voz sussurrada, aquele prenúncio da futura mulher, que não é mais um futuro, que sou eu, feita de sussurros de carrossel de cadernos e de milhões de folhas rabiscadas rasgadas inteiras molhadas publicadas queridas queridas queridas.
A vida não é um brinquedo inocente. A vida nos deixa tontos. A vida é o que o Toquinho me mostrou que seria e eu fico feliz de não ter entendido antes. Ele nem queria que eu entendesse. Ele queria apenas acariciar o que eu era. Ele queria, apenas, louvar o que eu seria, antes de todo mundo. Ele queria, quem sabe, como eu também quero, que um dia alguém se soubesse modificado por suas palavras.
E os meus cadernos seguem comigo. Essa música desenvolveu em mim um absurdo colecionismo. Ele me pedia para não esquecê-lo em um canto qualquer e eu jamais poderia mesmo fazê-lo. Ainda tenho os meus cadernos. Fico angustiada cada vez que penso nas traças e no mofo que podem estar os consumindo. Não tenho coragem de abri-los. Não quero me ver corroída. Não quero me ter esquecida. Posso fazer terapia para perder o medo insuportável da morte, para aprender a conviver com ele, mas não posso fazer terapia para esquecer o que sou. Meus cadernos são eu. Desculpe. Mas eles são eu.
E eu sinceramente acredito que um dia as pequenas mãozinhas dos meus filhos irão folheá-los. E lê-los irá modificá-los. E vê-los ler fará de mim, então, diferente.
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