Karen Scopel
O celular tremia sobre a mesa, era ela, a terceira vez em um intervalo de poucos minutos, ele atendia: “Eu não preciso de ti, não gosto de ninguém me controlando. Chega Ana, pára de chorar, não quero mais falar contigo agora, mais tarde a gente conversa”. Recolocava o celular sobre a mesa e esperava que ela chamasse outra vez, todos no restaurante já haviam percebido. Tocava novamente. A moça do outro lado da linha, que não o deixava almoçar, devia estar desesperada, se descabelando, com a voz embargada pedindo que ele lhe desse uma chance, que não a deixasse assim. Era difícil imaginar o que teria de tão especial o rapaz que atendia àqueles telefonemas, não chamava a atenção por sua aparência, os cabelos desgrenhados, como se tivesse acabado de passar por um vendaval, os ombros curvados, fazendo com que aparentasse mais idade do que realmente devia ter, e os olhos, esbugalhados, dava para sentir o vazio que vinha de dentro deles, além disso, era estranho o modo dele falar ao telefone, alto e claro, como se quisesse que todas as pessoas ao redor fossem suas testemunhas. Um pouco antes de o telefone tocar insistentemente, ele ligou para Ana, pediu que ela reconsiderasse e que eles retomassem o namoro, ela, mais uma vez, lhe disse que gostava de outro e tudo entre eles estava acabado, então, ele programou o celular para despertar logo depois e assim sucessivamente, atendendo e tentando convencer o fantasma com quem falava de que o deixasse em paz. Ana era simpática e extrovertida, bem diferente dele, difícil compreender que tenham permanecido juntos por quase dois anos, morava com uma amiga e um gato, que ele não gostava, trabalhava como caixa num supermercado, tinha os cabelos negros e compridos que usava, quase sempre, num rabo de cavalo, as mãos bem cuidadas e as unhas pintadas com esmaltes coloridos. Adorava sair com as amigas, ao contrário dele, que não tinha amigos e se satisfazia ao fazer parecer que os tinha. Ele vivia num apartamento pequeno, no décimo primeiro andar de um prédio sombrio, com janelas estreitas e longos corredores. Saíam muito pouco, ele preferia assistir filmes na TV.
Após o almoço, ele não conseguiu voltar ao trabalho, foi para casa, sentou-se de frente para a janela, a vista dava para o paredão cinza do prédio ao lado. Naquela noite, como nas anteriores, ligou para ela, uma, duas vezes e nada, a colega de apartamento repetia “Ela não está.”, como se fosse uma gravação. Ele, então, ficava a imaginá-la com outro. Será que este outro gostava do gato ou ela tinha se desfeito dele? Não, ela não faria isso, provavelmente ele teria um cachorro e todos seriam felizes. Sua angústia era tanta que ele sentia vontade de gritar, mas, impossível. Tinha vontade de sair dali, se mudar, ao invés disso ia todos os dias ao supermercado, vivia um constante jogo de cabo de guerra consigo mesmo, um lado lhe indicando para ir ao encontro dela enquanto outro tentava impedi-lo, o lado vencedor era sempre o que o levava até lá, ele fazia suas compras, às vezes apenas um sabonete, e passava no caixa ao lado. Um dia , chegou mais tarde, Ana já não estava, deu meia volta e próximo à porta viu-a deixando o elevador, sorridente e apressada, foi atrás dela, chegando à rua, ela correu para um homem que a esperava, foi um abraço de dar inveja, um abraço grande, daqueles em que se fecham os olhos e cola-se o corpo no corpo do outro, foi desesperador, ele ficou ali, as pessoas saíam e esbarravam nele, parecia ter-se enraizado, petrificado pelo que acabara de ver, talvez tenha permanecido assim somente alguns instantes, talvez, horas, os dois já haviam partido abraçados e ele continuava a vê-los, mesmo em casa, sentado de frente para a parede cinza. Mais tarde, escreveu a primeira carta, na manhã seguinte colocou-a no correio e assim passou a fazer nos quinze dias que se sucederam, chegava do trabalho, sentava em frente à janela e escrevia para Ana, não teve resposta para nenhuma delas, na verdade, ela sequer as leu, foram todas para o lixo. Se tivesse lido. Ele sempre planejou tudo, sua vida já estava toda esquematizada, Ana desorganizou tudo, então, foi mais fácil deixar o trabalho, parar de lavar as roupas, em dois dias seu apartamento estava irreconhecível. Ela não o via mais, então, a barba podia ficar por fazer e a falta de banho não seria notada por mais ninguém.
Ana ficou sabendo quando o policial lhe entregou a última carta. Se tivesse lido as outras, saberia que todas traziam escritas as mesmas palavras: “Estarei te esperando, no último sábado deste mês, queria estar contigo, lembra o que vamos comemorar?” No dia em que começou a escrevê-las resolveu que Ana decidiria a sua vida, assim como a havia mudado quando se conheceram. Para aquele encontro, arrumou a casa, tomou banho, fez a barba e penteou os cabelos cuidadosamente, a noite veio e ele esperou o quanto pôde, a janela parecia estar mais estreita e ventava muito.
26.03.2008
quinta-feira, 10 de abril de 2008
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5 comentários:
Karen:
Espero que os "Mecânicos" estejam a ganhar uma contista sem perder a cronista.
Gostei do conto. E, em particular, chamou-me atenção, o modo de escrever o final.
Almiro
Karen, obrigada por esta "janela" de aprendizado. Seu texto sinaliza novos rumos para os vôos dos mecânicos.
Beijos
Obrigada pessoal!
Almiro, gostaste do final?
Karen
O conto está exatinho!
Quase banal, quase cena-de-todo-dia,quase mais uma história de amor naufragado... E de repente o mar é mais profundo, de repente o coitadinho não é o coitadinho, de repente o final... ah, o final...
Todo bom contista sabe deixar a gente a desconfiar do final.
Adorei!
Olhando para a janela, lá no alto, vejo aquele corpo de balançando. Quem será? Porque terá decidido, quem quer que seja, a acabar com sua vida?
Conto excelente, tem clima, tem desfecho inesperado, e como todo bom conto (sabemos que o conto tem pressa, não é mesmo Karen?) com definição da história de forma inesperada e rápida. Radical também.
Valeu, Karen, você é ótima. Tem sensibilidade, humanidade, compreensão e até um inegável carinho pelos seus personagens.
parabéns.
Walter Galvani
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