quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Civilidade, a quantas anda?

Almiro Zago


A alegre fila de  gente  com crianças ansiosas para   fotos   com o Papai Noel, no shopping,    deu-me a ideia para esta crônica. Tudo porque a fileira  parece ser, ao menos a mim, uma das aplicações práticas da máxima - o meu direito termina onde começa o direito do outro. Seria, aliás, expressão de consciência jurídica.

Observar a fila, por certo, corresponde a  uma atitude que vai de acordo com o exercício da pacífica convivência comunitária, do respeito mútuo. E como andamos todos necessitados de respeito!...

Espontânea ou forçada, a observância da precedência de chegada sempre nos dirá de aceitação da ordem e dos limites democráticos à liberdade de cada um. Não seriam bases inseparáveis  do bom convívio social?

Já o retrato das ruas - em close a disputa entre motoristas e pedestres nas travessias -  e os noticiários da mídia dão bem uma noção de quanta gente temos alienada dos mínimos padrões de civilidade. Nem as Escolas escapam. As famílias, tampouco.

Mas enquanto muitos vem cultivando o bom costume de cada um aguardar organizadamente a sua vez, quando o exigem as circunstâncias, certos serviços públicos e, às vezes privados também, insensivelmente submetem as pessoas a demoradas  esperas. Ou angustiantes esperas, como as filas de doentes nos hospitais, não raras vezes com a morte à espreita.

E por falar nela, agora com 2010  olhando-nos de frente, por que não sonhar que a morte venha a cuidar da fila natural, rompendo as terceirizações com  os imprudentes condutores de veículos e os bandidos?

E na fila da esperança, até vai bem imaginar  nosso País poupado de roubalheiras, tipo essas do governador do Distrito Federal e seus comparsas, homens desabitados de dignidade, aquele sentimento lá do fundo que mandaria renunciar aos cargos públicos em semelhante circunstância.

Olhando bem, a fila, que já se chamou bicha,  está mais para aliada, pois afasta situações de estresse e ajuda a manter o bom humor. E até aproxima as pessoas. Já pensaram quantas histórias de amor teriam nascido em filas de espera?

Nem se pense em masoquismo, mas de fila sou fã. E, contudo, vez ou outra  não me salvo de alguma queixa, como esta no supermercado:

Parei  no último lugar na mínima  fileira junto ao balcão de frios. Notei um sujeito, por perto, ocupado em examinar  ingredientes de feijoada num expositor.

Estava eu a decidir entre queijo fatiado e peito de peru, quando senti três toques no  ombro direito. Voltei-me, e um cara alto  me avisou:
-  Eo to aqui.
-  Ah, sim...

Passaram-se alguns instantes  e... tóc, tóc, tóc  no mesmo ombro:


-  Eo to aqui.
- Tudo bem, tudo bem.


Deve ser um deficiente, pensei. Paciência.

Uns poucos segundos mais e outras três batidinhas. E o chato, nervosinho, repetiu:


- Eo to aqui!

Bah, o que vou dizer?  Ia contar até dez, mas num átimo  captei a  mensagem torta. Era o tal dos ingredientes de feijoada.


 - Ah... o sr. está  reclamando este lugar... Passe, passe e faça bom proveito.


Pois aos resmungos, ele passou.

E seguiu à minha frente  o deficiente cultural, isto é, o popular ignorante. 

Civilidade, me desculpe, mas como deixar por menos? 

                                          * * * *           


E por falar em Boas Festas...

Parece piegas, mas eu gosto da frase: todas as idades tem seus encantos.

Cada um bem saberá  reconhecê-los em cada etapa de sua vida. E tomara, sejam muitos. Os amores, os filhos e, lá adiante,  os netos,  por exemplo, como posso dizer.
Porém, ultimamente, tenho conhecido um novo e particular encanto: os meus leitores das crônicas deste blog e de meu livro "Mínimas Confissões". E alguns ainda tomam de seu tempo para mandar incentivadores comentários.

Claro,  nesta passagem de ano, todas as  homenagens aos meus leitores.

                                             * * * *

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

A migalha mágica *

Almiro Zago


Teriam os cientistas e os dirigentes do CERN captado as mensagens da ave e da migalha de pão que detiveram o grande Colisor de Hádrons?
 
Uma insignificante migalha de pão fez parar a  maior e mais complexa máquina até hoje construída no mundo. Parece ficção, mas aconteceu no último dia seis. Caída de um passarinho, foi parar sobre uma parte exposta do  grande Colisor de Hádrons, provocando superaquecimento. Por causa disso, todo o aparato acabou sendo desligado, é só voltou a funcionar quatorze dias depois.

Devo lembrar que se trata do bilionário projeto do CERN - Conselho Europeu para a Pesquisa Nuclear (ou LHC)   que, até o ano passado, já havia  sepultado por volta de sete bilhões de Euros num enorme túnel a cem metros de profundidade, num  lugar entre a Suíça e  a França. E  envolvendo perto de dois mil físicos de trinta e cinco países e dois laboratórios autônomos de pesquisa. Algo semelhante, porém menos adiantado, está em andamento nos Estados Unidos.

Tudo, claro, com elevados fins científicos: procurar uma explicação da origem da massa das partículas elementares e encontrar outras dimensões do espaço, simulando    a grande explosão que resultou na criação do universo.

Mas eu fiquei encantado com esse fascinante episódio do passarinho e da migalha, algo que vai muito além do pitoresco e curioso, ou do simples fruto do acaso.

Hoje, insistente ideia veio perguntar se não seria um sinal, uma pacífica advertência aos cientistas e aos seus dirigentes?

Algo como o escancarar a fome e a miséria diante da opulência do projeto; um  martelo nas consciências daqueles que usam fabulosos recursos em nome da curiosidade, da busca de grandeza, indiferentes aos  milhões de seres humanos a quem falta o pão, a roupa, a saúde.

Quanto simbolismo carrega uma única migalha, um poético convite à reflexão.

E um belo recado aos europeus. Tivessem, eles, investido semelhante fortuna em atividades produtivas nos países pobres da África, por exemplo, quem sabe bem menores fossem  as  levas de imigrantes africanos, que tanto os incomodam...

E o pássaro, em vou rasante,  de seu bico liberando a migalha de pão   bem encima de ponto sensível do mais espetacular produto da ciência. E fazê-lo parar. 

Em primeira leitura, vejo um certeiro golpe na soberba e egoísmo dos homens da ciência e seus ricos patrões. Depois, estaria ali um silencioso apelo do mundo animal, um pedido de socorro diante da progressiva eliminação de seus ambientes naturais. Justo a quem tanto deseja conhecer como tudo começou, mas que nada quer saber da humana sina destruidora da vida no Planeta. Quiçá, por já saber o final da história.

Teriam os cientistas e os dirigentes do CERN captado as mensagens da ave e da migalha de pão que detiveram o grande Colisor de Hádrons?
 
Nem ilusões tenho. Mas do que vale para o homem conhecer como era o Universo um bilionésimo de segundo após o Big Bang, - o momento em que as sementes da matéria começaram a existir - se a vida em nosso Planeta, pela ação do mesmo homem, parece caminhar para a extinção?

Só por implicância, daqui em diante ficarei torcendo para que a grande máquina, ao invés de um solitário passarinho, seja logo visitada por uma revoada de pombos malcriados...

                                               *  *   *

* = Ver "A indiferença de Minerva", crônica publicada neste blog, a 20/04/2008  

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Quando bacana é o chefe

Da série Casos de Viagens:

Almiro Zago


Primeiro, conheça o seu país, depois os outros. Cansei de ouvir isso. Mas, com bons ouvidos, também escutei a pragmática dica de uma amiga muito viajada:  "enquanto a idade e a saúde ajudarem, viajem pra longe; o perto, fique pra depois..."


Ultimamente, sentindo aquele "depois..." na espreita, calculei que a Irene e eu temos ficado na média dos dois conselhos, porém com parcimoniosa frequência.


Cedo, levamos a sério  o primeiro deles. Ainda em clima de lua de mel, saciamos a curiosidade de conhecer boa parte do Brasil. Não fomos no meu Dkw  bordô,  nem de avião, nem de ônibus de turismo. Viajamos de ônibus de linha com partidas e chegadas em estações rodoviárias, comprando passagens com alguma antecedência ou na hora. E reserva de hotel, pra quê?


As coisas iam bem, tudo cheirando a  descoberta: as paisagens ao longo das estradas, gente diferente, outros costumes. Assim, andamos por Curitiba e o norte do Paraná, pelo  oeste paulista e  São Paulo, Belo Horizonte, a barroca Ouro Preto e  adjacências.


Mas em Brasília... Como era  linda a noite de julho! Ao taxista, pedi para começar pelos hotéis mais em conta. E fomos aos mais caros, também. Nuns e noutros, apenas a antipática frase:  "não tem vaga". Culpa de  um congresso de médicos.


Nem mesmo o famoso e luxuoso  Hotel Nacional nos deu chance.


Salvou-nos Taguatinga, nas imediações. Num hotel com atraente luminoso em néon,  ficamos num quarto razoável. Mas o banheiro... Entrar? Só com  esforço de contorcionista:  a porta trancava em alguma coisa. Box ou banheira? Não usavam. E o chuveiro, muito original: bem em cima e  na direção do vaso sanitário...


Já de manhã, tomamos a grande decisão, pois o Rio nos esperava: encontrar  um bom lugar em Brasília ou ir embora.


Fica chato admitir, mas  coisa pior já me havia acontecido no Rio de Janeiro.


Hospedados num confortável e econômico hotel,  estivemos numa excursão para torcer pela  representante gaúcha, uma caxiense, no Concurso Miss Brasil 1969. Nem adiantou, a  Vera Fischer venceu.  


Bom, a serviço, voltei ao Rio no mês seguinte. Faceiro, sem  reserva de hospedagem,  fui ao mesmo lugar por nada. Já cansado das negativas dos hotéis da ainda charmosa Cinelândia, conformei-me em parar numa espelunca, pagando adiantado. No que seria o único quarto disponível, notei que era de vidro transparente a parte superior de uma  parede, deixando-me na vitrina   para quem descesse  a escada do corredor.


Larguei a bagagem e saí. Sem encontrar táxis, às onze da noite, ruas desertas,   andei umas dez quadras  até a Cinelândia. Exausto,  revisitei os mesmos hotéis. E, no Senador, passados três segundos da negativa, da voz do gerente saiu: "fulano, dá pra ele a reserva técnica..."


Todavia, naquela manhã em Brasília,  um atencioso taxista  foi  repetindo o infrutífero  roteiro da noite anterior. Eu, colecionando frustrantes respostas.


E o Hotel Nacional? Sim,  o mais chique  e muito mais salgado, ou  pior,   longe das minhas possibilidades.


Cheguei no ambiente requintado, os homens, "comme il faut", de terno e gravata, e este provinciano em manga de camisa,  calças  jeans   e  cara de constrangido.


Nem é de acreditar: o "Sinto muito, não temos lugar", do recepcionista mereceu imediato desmentido do seu chefe:


- Vê  o número tal...pra ele.


Contente e esquecido do preço,   fui avisando que iria buscar minha mulher. Mas o dito chefe, coçando a cabeça,  examinando  minha indumentária, bem do jeito de  "não vá dizer que  não te avisei" -  advertiu:


- A diária é  cento e dez Cruzeiros por pessoa, viu?!...


Vi. E no bolso, como senti!


Está certo, Brasília e sua arquitetura modernista valiam.


Já o Governo de então...             


                                             ***


P.S: Mínimas Confissões" na Feira do Livro de Porto Alegre:


Banca da Livraria do Maneco - bem na parte central da Praça da Alfândega;


Banca da Livraria Nova Roma, na Rua 7 de Setembro.                                            

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Os livros e a praça

 Para o semanário "Tempo Todo",  de Caxias do Sul

Almiro Zago

Os livros são pequenos pedaços do incomensurável. 
(Stephan Zweig)

A praça, talvez  nem seja a mesma. Dante Alighieri,  seu antigo patrono, retomou seu posto, sem mágoas de Ruy Barbosa, imagino, pois num certo momento histórico  tivera seu nome  usado com fins pseudopatrióticos para despejar o autor da Divina Comédia. 

Depois, a radical e bonita remodelação paisagística,  feita há uns poucos anos, também  favorece  a ideia de que outra seja a praça. Olhando bem, apenas alguma coisa do seu chafariz e  a Estátua da Liberdade, a oliveira vizinha de uma araucária e o  monumento ao Duque de Caxias  me dizem algo  do   belo espaço público da minha adolescência e juventude. 

Mas,  nos afetos do meu imaginário,  nada mudou do ponto de encontro da cidade, o lugar de reunir-me com amigos antes do cinema, de ver as garotas, de passear com a namorada. 

E foi ali,  num dos primeiros meses de 1961,  que eu conheci uma modesta,  porém intrépida  Feira do Livro  com descontos e tudo.

Embora não tenha sido fácil  reunir  pequena soma em Cruzeiros, comprei três livros - de menor preço -, escolhidos dentre os volumosos para ter mais leitura e viver aquilo que  Jorge Luis Borges referia como uma forma de felicidade.

E bem me lembro  do mais alentado, traduzido do espanhol,  que trazia o curioso título: "Epitalâmio do Negro Trinidad".

Custei a entender a história  porque havia tomado  epitalâmio por  epitáfio. Claro, ficou  mais fácil entender a novela de Ramón J. Sender ao descobrir o significado: canto ou poema nupcial. Confesso, entretanto, ter ido ao  Google resgatar o nome do autor. 

Ao curso do tempo,  outras Feiras do Livro vieram  marcar ponto na praça  até esta vigésima quinta consecutiva. E, agora,  é lá que se apanham os bilhetes econômicos da  melhor nave para viajar longe: o livro, como teria dito Emily Dickinson.

Mesmo sem morar em Caxias, venho participando de quase todas as Feiras,  como leitor. 

Levando a sério o que disse Italo Calvino - "escrever, é sempre esconder algo de modo que mais tarde seja descoberto" -,  desde a edição de 2007, tenho  a  alegria de incluir-me entre os autores.

E isso, passados 46  anos  do "canto nupcial" do Negro Trinidad.

Ah, esclareço: já não confundo  epitalâmio com epitáfio... 

Meu livro "Mínimas Confissões" estará na Feira do Livro de  Caxias do Sul, de 2 a 18 de outubro, na Praça Dante Alighieri.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Agora, o caso da janela

Almiro Zago
Da série Casos de viagem:

Li numa crônica do Eduardo Festugato, da sua coletânea "Sede de viver", que "Morar num apartamento é fugir da vida".

E até faz um certo sentido, pois o médico e escritor, além de apaixonado pelo viver em meio à natureza, pelo cheiro de terra, levanta interessantes e poéticas razões na sua crítica aos arranha-céus, aos prédios de apartamentos.

Suavizando a ideia, se me permite seu autor, diria que as circunstâncias econômicas e, acima de tudo, a insegurança vêm empurrando muita gente aos apartamentos em edifícios. Eu, inclusive.
Embora, no Brasil, já não se saiba de lugar a salvo da violência, não seria nas casas que as pessoas ficam mais expostas?

Sei bem o que seja viver numa casa, pois em diversas morei, todavia, em tempos menos ásperos. Só me restam nostálgicas lembranças da sensação de liberdade, de estar perto da rua e, claro, de plantar roseiras e gerânios, sálvia, alecrim e manjericão.

Disse tudo isso a pretexto de contar do prazer estético por mim experimentado, pouco tempo faz, de ver e admirar casas - às centenas - em cidades e lugarejos. Muitas de madeira e peculiar beleza arquitetônica, quase sempre rodeadas de gramados e jardins, impressionam pela caprichosa conservação. Que vontade de morar numa delas!

Agora, o invejável, o mais importante: sem grades!

Refiro apenas o imperdoável defeito de ficarem nas províncias canadenses de Ontário e Québec...

Saberiam seus habitantes o significado de morar numa casa sem os medos e temores que nos sobressaltam?

Por distração da sorte, perdi a chance de conhecer a "Casetta Piccolina in Canadà", aquela da canção do Festival de San Remo que muitas vezes anunciei no meu tempo de locutor de rádio. Nem adiantou queixar-me ao poliglota garçom do café da manhã, em Montreal. Mais do que cantar a música, ele não sabia.

Eh... mas uma velha casa, da velha Québec, pregou-me uma peça. Québec, cidade antiga e murada, com sua impecável aparência sugere ter sido acabada no dia anterior.

Deu-se na tarde quente, pelas cinco. Em cima da hora de partir, resolvi comprar água mineral em garrafa pet para levar. Estive em dois bistrôs com terraços externos repletos de gente, sem achar o que procurava.

E porque o terceiro ficava na esquina, apressado contornei o canto em leve descida, buscando a porta. Logo dei com uma abertura, e era ampla, por onde entrei caminhando em direção ao balcão.

Ali, um sujeito alto, da minha idade, pose de chefe, estava parado no recinto vazio - clientes no lado de fora. Disse-me algo como "fenêtre", janela, exibindo um sorriso mais aberto do que o da Mona Lisa, porém, não menos enigmático. Estaria a conter o riso ou uma contrariedade?

E repetiu a frase: "o senhor entrou pela janela..."

Por instantes, senti a mente confusa e me vi a pular janelas com a agilidade que já não tenho. Teria esclerosado, assim de repente?

- Não é possível...Desculpe. Mas isso aí é uma janela?

Olhei bem para um espaço largo, uns dois metros, com a base ao nível do piso por onde passei. Está certo, tecnicamente, porta não seria, embora bem cumprisse a função de passagem.

Fingi achar graça, mantendo a elegância, mas fiquei meio chateado, pois teria caído bem um toque de finesse do cara. Era esperar quando eu fosse embora e me alertar: olhe, a saída é por ali, apontando a "porta oficial", o que me faria perceber o risível engano.

Em vez disso, ao me afastar, franzindo o cenho perguntei: por onde devo sair?

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Procura-se

Procura-se um cachorro perdido, uma criança desaparecida, um carro roubado, um emprego. Procura-se um tapete lilás, um apartamento novo, uma doença, um marido.

Alfredo procurava uma doméstica, a moça dos anúncios classificados pediu que ele repetisse mais de uma vez o que desejava: “Procura-se uma empregada que não fale com o patrão”. Sim, era isso o que ele queria que saísse no jornal de domingo, a pessoa não precisava ser muda, apenas calada. Sua última empregada, D. Valdete, havia transformado seus dias em um inferno de palavras ditas, nunca imaginou que alguém pudesse pronunciar tantas frases e emendar assuntos desconexos como se fizessem parte da mesma trama. Por vezes, pegou-se duvidando de sua própria capacidade de interpretar o que ela lhe dizia, afinal, perdia-se no meio da história e, claro, era melhor não tentar esclarecer com ela suas dúvidas, pois isto seria motivo para mais assunto. No início, a observava espantado esperando que a mulher fizesse uma pausa de alguns segundos para respirar. Em seus pensamentos chegava a vê-la arroxeando as bochechas e caindo desmaiada por falta de ar, mas não, ela tinha uma técnica incrível, falava sem parar e respirava ao mesmo tempo.

Nos anúncios, Alfredo buscava as mais diversas coisas, sempre gostou de ler os classificados, mas até nisto aquela infeliz lhe atrapalhava. Um dia, achando que o jornal tivesse vindo pela metade, ele resmungou reclamando:

- Era só o que me faltava, meu jornal foi entregue faltando uma parte.

D. Valdete, muito prestativa, retrucou, como se ele tivesse lhe dirigido a palavra:

- Não, seu Alfredo, seu jornal veio completo, eu é que peguei os classificados, que não servem para nada mesmo, e usei para limpar os vidros, tiram a gordura e não deixam um risco sequer. Ah! O senhor prefere frango ou guisado para o almoço? A empregada do apartamento vizinho me contou que a patroa dela está de namorado novo, o que é que o senhor acha? Está meio passada, é uns anos mais velha que eu, acho até que regula em idade com o senhor...

Ela continuou falando, ele se deixou cair mudo e vencido sobre o sofá.

Alfredo procurava sobreviver às overdoses verbais impostas pela empregada. Numa manhã chuvosa de sábado, pensava sobre o que lhe seria mais conveniente, comprar protetores de ouvidos, mandá-la calar a boca ou despedi-la. Também imaginava, ansioso, o quão prazerosos seriam a tarde daquele dia e o domingo. D. Valdete, aos sábados, ia embora após o almoço e ele, finalmente, ficaria sozinho, poderia ler os classificados e ver televisão sem ser interrompido por nenhum comentário descabido.

- Seu Alfredo, o senhor prefere os ovos bem cozidos ou com a gema mole?

Ela sabia a resposta, toda a vez fazia a mesma pergunta.

- São bem cozidos, D. Valdete.

O senhor deveria variar o cardápio do sábado, seu Alfredo, sempre risoto e ovos cozidos, não enjoa não? Posso fazer uma feijoada para o próximo, quem sabe uma lasanha, isto sim é que é almoço de sábado, aprendi a fazer umas almôndegas que o senhor ia adorar. Lembra do namorado novo da vizinha, parece que trocou ela por outra mais nova, eu bem que falei que não ia dar certo, agora a velha quer fazer uma plástica, se esticar mais não vai adiantar nada, o porteiro me disse que ele mandou umas flores terminando tudo e ela fez um escândalo na portaria.

Na sala, sentado em sua poltrona reclinável, Alfredo sacudia os pés e mal conseguia segurar o jornal, tremia de irritação. A voz daquela mulher reverberava em sua cabeça, causando-lhe náuseas e embaralhando seus pensamentos. Levantou-se com dificuldade e caminhou de um lado para o outro como que perdido, preferia bater com a própria cabeça contra a parede do que continuar a ouvir aquela voz. Estaria ela falando sozinha, delirando, ou pior, tentando enlouquecê-lo? Aproximou-se da janela, poderia atirar-se dali ou, então, atirá-la, não, isso não poderia estar acontecendo, na tentativa de acalmar-se foi para o quarto. Alguns minutos depois, D. Valdete, com o intuito de avisá-lo que a comida estava pronta, foi atrás dele.

- Ué, seu Alfredo, não está bem, resolveu se deitar? Venha almoçar primeiro, mais tarde o senhor descansa, mas também, descansar do que, não fez nada hoje, passou a manhã sentado lendo o jornal.

O homem olhou-a de soslaio, abriu uma gaveta do criado mudo e tirou de lá uma tesoura, a mesma que usava para recortar do jornal os anúncios que achava mais interessantes, levantou-se devagar e caminhou lentamente em direção a ela.

- Não D. Valdete, vou fazer algo que eu já deveria ter feito! – gritou. A mulher, espantada, recuou enquanto ele seguia vagarosamente em sua direção.

- Vou cortar a tua língua, assim não vais conseguir infernizar mais ninguém, não sei como não pensei nisto antes!

Ela esboçou um sorriso de estranheza, afinal o patrão nunca fora dado a este tipo de brincadeira, porém, em poucos segundos, percebeu seu olhar nebuloso, deu mais alguns passos para trás, virou-se e saiu tão rápida quanto a idade lhe permitia. Passaram, então, a correr pelo apartamento tal gato e rato, dois velhos enlouquecidos, desviando de mesas e cadeiras, tropeçando no sofá e nos próprios pés, ela gritando por socorro e ele xingando-lhe.

- Seus dias de faladeira acabarão agora, pare aí que vais ver!

D. Valdete conseguiu abrir a porta e fugir para o corredor, foi amparada pelo porteiro, que subira correndo os dois lances de escada para verificar o que estava acontecendo. O rapaz, ainda sem entender nada, olhou surpreso para Alfredo, que ainda empunhando a tesoura gritou:

- Isto! Segura que vou cortar-lhe a língua.

domingo, 2 de agosto de 2009

A revolta das criaturas

Almiro Zago

"Não há melhor espelho que um velho amigo."
(Santo Agostinho)


Respeito aos mais velhos foi, na minha infância, um preceito forte, repetido na família e na escola. Por mais velhos, reconhecia todos os que tivessem aparência de adulto, não apenas os idosos.

Pois, agora, também sou entrado em anos. Só não tirei carteirinha. Mas as coisas estão diferentes. E como!

Respeitar os idosos vem sendo atitude em crescente migração da regra geral rumo à exceção.

Sempre achei que a deferência especial aos velhos reclamava, em certa medida, semelhante comportamento deles em relação aos mais moços, em homenagem à convivência fraternal entre as gerações. Vejam que "nos olhos do jovem arde a chama, nos do velho brilha a luz", escreveu Victor Hugo.

Desde tempos imemoriais, em todas as culturas, os velhos têm sido considerados sábios, certamente pelas vivências e experiências acumuladas ao longo da vida.

Nos dias que correm, bem observando, encontramos velhos com muito a dizer e a ensinar, mas poucos interessados em ouvi-los. Terá sido sempre assim?

Mais triste é reconhecer que velhos há sem nada de bom a passar para a juventude. É só olhar para o Senado da República. Lá, estão homens da Terceira Idade exercendo mandato de senador. E, desses senhores, o mínimo a esperar seria exemplos de sensatez, dignidade e respeito ao interesse público.

Ao invés disso, o que vemos na TV e nos jornais são imagens de alguns homens em provecta idade, frustrando o povo com sua conduta antiética na busca de vantagem pessoal, familiar e/ou de grupos.

O diabo, dizem, mais sabe por ser velho do que por ser diabo. Aos meus ouvidos, esse ditado soa como homenagem à velhice. Fico sentido, mas está difícil reconhecer o mesmo em relação aos senadores idosos envolvidos em deploráveis episódios.

Suspeito tenham eles envelhecido em cumplicidade com a diabólica "sabedoria". Talvez, isso explique o caso do Presidente do Senado, aquele de “brasileiros e brasileiras” do tempo do Plano Cruzado.

Orgulho, ambição e ganância não o deixaram satisfeito com as honrarias do cargo de Presidente da República e da qualidade de “imortal” da Academia Brasileira de Letras.

Preferiu manter-se na vida pública, perseguindo interesses, finalmente desvelados, comprometedores de sua imagem e do destino de recursos públicos.

Aliás, o Lula andou dizendo que a Polícia Federal considere a biografia dos investigados. No caso do Sarney, ele próprio a esqueceu.

Ainda que não acredite, pode ser que tudo o que venha a ser feito para penalizar o escritor de "Marimbondos de Fogo" acabe em "pizza", do jeito que a mídia gosta de dizer.

Mas acontecendo o pior, por consolo, ainda restaria a esperança de revolta das criaturas - os marimbondos - contra seu criador, dando-lhe, desculpem a maldade, algumas ferroadas num certo ponto estratégico, revelando de vez o efeito Pinóquio.

Depois, em desagravo aos idosos bons senadores, bem que poderia um excitado enxame de marimbondos distribuir picadas em algumas cabeças esbranquiçadas ou tingidas, calvas ou cabeludas de solidários amigos do autor da obra.

Bem... imaginar é de graça.

27.07.09

sexta-feira, 24 de julho de 2009

Júlia e o seu destino


Minha Júlia,

Escrevo-te, para aliviar a pressão. Sei o quanto gostas de me ler. Fazes sempre parte das minhas letras, e não evito. Por isso queres tudo o que flui destas mãos. Tens razão em querer.

Vejo-te sentada no sofá. Tão tarde e ainda aí. Nunca foste de deitar cedo. Nem com ele. Vejo-te no sofá. A televisão em qualquer canal. Os lábios grudados na xícara de café vazia desde que a novela acabou. E lá se vai mais de uma hora.

Sei que estás sozinha e não queres ler nada triste. Nada é triste. Nem mesmo esse teu resto de café frio. Percebes? Tenho-te sentada no sofá, esperando o próximo programa antes de ir para a cama. Tenho teu medo de dormir. Não é triste. É só bonito.

Se pudesse, acariciaria teus cabelos. Gosto de ti assim. É preciso te observar de perto. Espremer os olhos para ver. As coisas te acontecem quase no tempo do não acontecer. Tua vida vai como um jazz. És tão melodiosa. Distorces, porém nunca, Júlia, destoas.

Não, isso não é ruim. Não balance a cabeça. Não me repreendas como farias ao teu velho pai. Não és de forma alguma monótona, minha Júlia. Já ouviste um jazz? Não franze tua testa. Escrevo-te para aliviar a pressão. Não para colocar-te em sobressalto. Para ti, quero somente paz.

Escrevo-te, Júlia, e é tão bom. Gosto do ritmo em que as coisas se dão. Teu ritmo é maior do que eu. Escrevo-te, mas teu ritmo veio pronto. Deleito-me, embora te enfureças, às vezes. Tu és, Júlia, mas entendo que não te enxergues.

Vê, ao menos, quantas histórias já temos. São todas as histórias de Júlia. Sorri. Não és triste. Nem serás. Eu prometo. No que depender de mim.

Amor,

A.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

O retorno do "far west"

Almiro Zago

Será que o ser humano não presta? Tão dura e pessimista ideia, assim como está escrita, ou em brandos termos posta, ene vezes escutei, ainda quando, inocente ou ignorante, sequer compreendesse o seu significado.

E, certamente, não eram as vozes de filósofos discutindo se o homem é bom ou mau por natureza.

Ao correr da vida, não poucas vezes, vi-me surpreendido a refletir sobre o tema, e meu lado otimista levando a melhor. Porém, a cada vinco no rosto e a cada fio de cabelo que se vai, o pessimismo vem ganhando posições, e nem sei até onde minha resistência chegará.

Essas reflexões vêm reaparecendo a propósito, e não só por isso, das notícias de que a Coreia do Norte, detentora da bomba atômica, está a desenvolver e a disparar foguetes capazes de conduzir ogivas nucleares.

Pois guri ainda, ouvia falar da terrível 2ª Guerra Mundial e das coisas pavorosas nela acontecidas. Por isso, ingenuamente, imaginava que os homens, as nações nunca mais fariam guerras.

Ledo engano! Já estavam no rádio os noticiários sobre a Guerra da Coreia...

Depois, por esse mundo afora, em maior ou menor escala, foram aparecendo conflitos armados sob os mais variados pretextos. Ao que penso, o maior deles terá sido a Guerra do Vietnam.

Isso que nem falei das conflagrações internas em muitos países e da pesada repressão a opositores de seus regimes. Sem dizer, também, da destruição da natureza e da poluição ambiental em terra e na água.

E agora, disputando atenção com o Iraque, o Afeganistão, volta a Coreia do Norte a exibir aparato bélico, vindo de bomba atômica que a Índia, o Paquistão, Israel e, dizem, que o Irã quer tê-la também, além dos arsenais das, ditas, grandes potências, claro.

Ninguém ignora que a sede de poder e de sangue, o ódio, os loucos sonhos de grandeza nacional, a ambição e a ganância, os interesses de dominação política e/ou econômica, ao longo da história humana, levaram morte, sofrimento e destruição a incontáveis gerações.

Afora essa categoria de conflitos, outros há que, desde sempre, infelicitam as comunidades, indiferentemente de meridiano ou paralelo. Mas, hoje, mais que nunca desgraçam o nosso País. Refiro-me, por certo, à escalada da violência, da criminalidade de todas as formas - que parte e age, em maior ou menor grau, - de todos e em todos os estratos sociais.

Os jornais, a TV e o rádio nos martirizam com as resenhas dos horrores do dia: assassinatos, furtos, roubos, assaltos com morte, violência nas famílias e nas escolas, o drama das drogas e o tráfico, mortes no trânsito nas cidades e nas estradas... E tudo em números crescentes, com a corrupção grassando desinibida pela sociedade consumista, cada vez mais desapegada dos valores éticos e morais.

Estaria certo Thomas Hobbes, filósofo inglês, ao sentenciar, lá no Século XVII, que o "homem é o lobo do homem?

Numa época em que se apreciava filmes do "far west", aqueles da eterna luta entre bandido e mocinho, xerife e pistoleiro, das brigas e duelos, via-se na tela cenas de matanças, de bandoleiros pilhando pequenas comunidades distantes e atacando fazendas isoladas, ou praticando assaltos a diligências e trens, a bancos. Tudo parecia tão insólito e de lugares e tempos remotos...

Já não parece. O faroeste, agora, é aqui.

Haja, pois, esperança!...