sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Faz bem ler a bula

Almiro Zago

Bateu vontade de escrever alguma coisa e saí a pescar assuntos. Na mídia, falavam de corrupção, assaltos, matanças aqui perto e no Oriente Médio, diziam de terremoto na Itália, do impeachment de Dilma Rousseff. Nalgum canto por aí, dormitaria a motivação para ir ao tema clima político, aliás, campo onde muitos vivem encerrados nos fortins de suas ideias e posições impermeáveis, mandando ao exílio palavras como ponderação, diálogo, tolerância e seus significados.

O olhar na caixinha de remédio à minha frente, qual bip programado, lembrou-me de algo a fazer: cuidar de certos sinais emitidos pelas minhas pernas, afinal por elas sou carregado, narrando pequenas vicissitudes pessoais. Ao menos, salvo ao autor, este texto nada além de chateação levaria aos leitores.

E, num átimo, emergiu da memória algo que se passara comigo há algum tempo, um exame visual e crítico do estado de finura dos membros inferiores, pelas calças disfarçados. Sem aviso, tocou-me a autocomiseração, mas cessou ao faiscar na mente fugidio consolo: guardavam semelhança, pelos à parte, com as pernas das modelos. É, sim, em comum, elas e eu exibíamos par de caniços andantes, a revelar, no meu caso, indesejável magrez, palavra apropriada, acreditem.

Vai bem dizer que a esse estado físico, nem mesmo em momentos depressivos buscado, cheguei em alguns meses, ao largo de regimes programados ou dietas indicadas. Mas sinta, você que chegou até aqui, andei me alimentando de tudo o que de saudável apetecia. Entretanto, deixei de prestar atenção ao essencial: daquele tudo, comia muito pouco.

Deu nisso a convivência com certo mal sem diagnóstico, daqueles que a ninguém leva direto à tumba ou à urna de cinzas. Não bastassem desagradáveis manifestações, como greve intestina, passou a afetar o paladar, reduzindo vontade e prazer de comer.

Exigiu minha rendição a realidade, pois alguém que, segundo vozes familiares, já era magro, perdera  quatro quilos e meio. Por sua vez, o médico, depois de exames disso e daquilo, deixando de lado receituário, ordenou: trata de comer! Está bem, mas o apetite não ouve ordens, nem se comove com sorrisos

Ainda bem que a “repórter” não me viu nessa fase. Refiro-me a certa senhora que se considera amiga da gente, porém pessoa chata, insistentemente perguntinha. Numa das últimas vezes que a vi, não tendo a sorte me ajudado a desviar caminho, fui por ela submetido a um extenso questionário. Começou perguntando pela Irene, depois pelo filho, interessou-se por minha filha e os filhos dela, os meus netos. A cada resposta, brotavam pretextos para outras indagações. Tudo deveria ficar bem esclarecido.

Entretanto, “memorável” foi o fecho da entrevista:

— E tu, como vais?

— Comigo, tudo bem.

— É, agora sim, mas uns tempos atrás tu andavas decaído.

Por certo, ter-me-ia* achado “mais decaído” e chamaria o Samu.

Pois nesse indigesto processo, senti belo consolo ao notar a economia do dinheiro aplicado em vinhos. Porque as papilas gustativas só me passavam acidez, o degustar do néctar dos deuses conheceu o esquecimento. Vi evaporar-se uma das alegrias da vida.

Em clima de falsa anorexia, aborrecido era o sentar à mesa, sentindo o apetite descer ao nível dos sonhos daquelas mulheres que tanto sofrem para perder peso.

Resguardando minha imagem, asseguro não ter incorporado o hipocondríaco, já o complexo de vítima nem cafezinho tomou comigo.

Mas aí veio o sábado de Páscoa. Paramos para almoçar num restaurante de beira de estrada e para chegar à portaria, caminhei, tendo à minha frente um sujeito idoso, alto e magérrimo. Às suas costas, imaginário cartaz reproduzia conhecida frase “Eu sou você, amanhã.”.

Soube, em momentos, o significado de impressionado, dolorido e triste por dentro. Súbito, então, em pensamento repetia: não, não quero ficar desse jeito.

Passada uma hora, talvez, surpreendi-me durante o almoço por quase desconhecida sensação e sem notar escapuliu-me a frase: como é bom comer quando se tem fome!

Fora o primeiro passo para recuperação que só viria após deixar de tomar, com a devida cautela, determinado medicamento.

Aconteceu-me ter ingressado no pequeno percentual de pessoas que sofrem determinado efeito colateral de remédio descrito em extensa e tenebrosa bula.

E assim a melhora foi chegando de mãos dadas com o alívio pelo perecimento do temor de encontrar certa “repórter” por aí.
                
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* Qualquer semelhança com usos de certa figura não terá sido mera coincidência.
28.08.2016                        


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