sábado, 11 de dezembro de 2010

Mestres, categoria em extinção?

6/12/2010                 

Almiro Zago

Poucos sábios, ao longo da história, puderam ostentar um nome que bem dissesse da grandeza, do prestígio de seu portador. 

Desiderius Erasmus von Rotterdam (1466-1536)  decerto foi um deles. Não acham?
 
Pois, dizia o humanista e teólogo holandês que “a primeira fase do saber é amar os nossos professores”; e que “o amor recíproco entre quem aprende e quem ensina é o primeiro e mais importante degrau para se chegar ao conhecimento”.

A despeito das belas ideias de Erasmo de Rotterdam, na maior parte desses cinco séculos que dele nos separam, deram-se as relações escolares com a franca subordinação do aluno. E mais: sob severidade disciplinar e castigos aos transgressores.

Não saberia imaginar que tipo de relação afetiva se teria podido desenvolver em clima autoritário entre mestres e estudantes em favor do saber que, não obstante, era alcançado. 

Se falarmos em Brasil, não seria exagero reconhecer que aquela dureza de ambiente escolar vingou até os anos 30 e 40 do século passado, se não me engano.

Depois, ao curso do tempo, sedimentou-se um clima de democratização na escola, desaparecendo o exacerbado rigor daqueles que ensinavam. Alguém poderia perguntar se os professores passaram a ser amados por seus alunos nessa nova fase, ou se, em algum grau, desenvolveu-se o amor recíproco entre quem aprendia e quem ensinava, segundo o monge Erasmo.

Quem sabe, nos digam alguma coisa as sucessivas gerações de mestres e estudantes que, desde então, passaram pela escola. Sobreviventes, ainda, não faltam.

Mas para consideráveis grupos das gerações que hoje frequentam os bancos escolares, a julgar pelos noticiários da mídia, inclusive das páginas policiais, falar de amor e respeito aos professores parece coisa de outro planeta.

De minha parte, vivo sentida inconformidade, pois sempre cultivei respeito e admiração pelos meus professores, a começar pelas  professoras do primário.

Como pôde nossa sociedade ter chegado ao ponto de vê-los acuados, desrespeitados, agredidos fisicamente em sala de aulas por seus alunos? 

Pior, como é que temos tido tantas famílias (?) criando filhos tão problemáticos, indisciplinados e sem limites, destituídos de noções de civilidade, carentes das mínimas condições de respeitosa convivência?  A resposta, eu não a tenho, mas aposto que os pais a conhecem muito bem.    

Soa ignominioso tudo isso, já que os mestres deveriam estar entre as mais prestigiadas e queridas figuras do meio social por tudo o que representam. 

Depois, pensemos na contradição: qualquer um de nós que tenha progredido na vida, às vezes alcançando as melhores atividades ou cargos bem remunerados, na iniciativa privada ou no serviço público, passou antes pela escola. Claro, auferindo conhecimento ministrado pelos professores.

Mas aos mestres, sem cujo esforço ninguém lá chegaria, têm sido reservados mesquinhos vencimentos. Por certo, isso ajuda a entender a razão pela qual, a cada ano, vem caindo de maneira preocupante o interesse de estudantes pela carreira do magistério.

Nem vou perguntar se na escola atual há quem ame seus professores. Talvez, no momento, eles mais não aspirem do que o prosaico respeito.

                                                   * * *

sábado, 20 de novembro de 2010

Rovílio Costa e o escritor

 Almiro Zago

Recentemente,   divulguei neste blog o convite para o lançamento do livro  Construtores de História – Famílias Italianas do RS, que traz os textos premiados no 1º Concurso Frei Rovílio Costa. Pois há poucos dias, caiu-me às mãos a obra “As Feiras do Frei”, e deparei-me com um belo e profundo poema, no qual o homenageado daquele certame  exalta a figura do escritor e o  significado de seu ofício.  Vamos compartilhar sua leitura?

“Dar oportunidade ao escritor
é dar oportunidade à criação,
à tentativa de perenizar experiências humanas
através da palavra escrita, é imortalizar as gerações
para o futuro da humanidade. Escrever é um fazer
que não se esgota na própria escrita, mas que inicia
uma nova forma de vida de quem escreve, que se torna
conhecido de quem não conhece;
vizinho de pessoas distantes; morador de prateleiras
ao lado de falantes de diferentes idiomas;
pensado por pensadores de pensamento divergente;
sonhador de sonhos que outros gostariam de ter sonhado;
criador de mundos estranhos, possíveis ou imaginários;
interlocutor com gerações passadas, que continuam vivas
através de seus escritos, relidos e/ou reinterpretados.

O escritor é alguém que aposta e promove a criatividade;
é como a criança que vive de eterna curiosidade,
que envelhece sonhando e morre ressuscitando,
como um mero jogo da vida e da história. Sonhos de
humanidade sustentam a vida dos escritores e pensadores.
Para escrever, precisa parar, harmonizar-se, olhar para o
passado, empolgar-se pelo presente e idealizar sonhos
para o futuro. O livro é participação, vida, calor, suor,
sangue, luta, derrotas, vitórias, choro, lágrimas,
gargalhadas, risos, preces, blasfêmias... É tudo isto ao
mesmo tempo, porque são vidas traduzidas e
multiplicadas através do papel escrito.”

Rovílio Costa:
na abertura da 20ª Feira Regional de Novo Hamburgo,
15 de agosto de 2002.
Extraído da contracapa do livro “As Feiras do Frei”,
EST  Edições (2007), organizado por Marilene Dorneles.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Primavera, além das flores e alergias

Almiro Zago

De cara lisa

Foi assim que se viu, na campanha política,  a maioria dos candidatos nas fotos estampadas em seus materiais de propaganda. Milagre operado pelo  Photoshop.

Sabem todos que esse recurso fotográfico permite esconder os sinais que o passar dos anos vai desenhando, esculpindo no rosto da gente. E, assim, a pessoa não se mostra   envelhecendo, nem envelhecida.

De minha parte, nada contra o uso do  Photoshop, menos quando se trata de candidatos a cargos eletivos. Como confiar em alguém que cuida de nos impingir uma imagem que já não lhe pertence?

Depois, se   candidatos – acima dos quarenta – aparecem sem rugas, sem manchas,  de pele lisa, isso não representaria   indireto desprezo pelo eleitor que ostenta as marcas do tempo? Meus sulcos, minhas rugas  e eu  nos sentidos rejeitados, sim.

Se os homens e as mulheres que pretendem me representar nos parlamentos, nos governos renegam a aparência de seu estado corpóreo, ao meu assemelhado,   a eles meu voto não mais darei. 

“Recuerdos” de Atacama:

I  : Das profundezas da  indiferença  ao pináculo da valorização da vida humana.    

II: Agora é cedo, mas em  dez, vinte e tantos anos, –  trinta e três histórias  à espera de  autor. Na sobrevida, o que terá acontecido a  cada um dos mineiros?

Concertos de primavera

Não, não me refiro ao Concerto Primavera de “As quatro estações”, de Vivaldi, mas aos concertos (ou seriam recitais?) dos sabiás nos arvoredos das ruas e do parque, perto de onde moro.

Agora, se o compositor veneziano, lá no Século XVIII, tivesse conhecido o canto desses pássaros, por certo  nos teria legado um concerto barroco com o título “Os sabiás”, ou coisa assim.

Pois a cantoria dos sabiás  me conforta na  insônia, quando   no silêncio das madrugadas  mais puros revelam-se os sons dessas divinas aves em seus diálogos canoros.

E, depois,  do amanhecer ao pôr-do-sol, em aparente revezamento,  os   sabiás     seguem levando ao ar sua música nostálgica, amenizando a atmosfera ruidosa da cidade.

Em caminhadas matinais,  tenho percebido que  um ou outro, em plena cantoria, se deixa  observar mais de perto, como aquele sabiá pousado num galho baixo de uma árvore, ao alcance de minha mão. Acho que  nessa hora mágica alguma força invisível protege o bichinho dos predadores e intrusos.

Reencontros

Sabem vocês da emoção de reencontrar amigos depois de muitos anos?

Eu bem a conheço, pois em setembro e outubro, particularmente na Feira do Livro de Caxias do Sul, vivenciei  várias vezes essa alegria.

E escutei amáveis manifestações do tipo: “Mas estás igual”, “Estás o mesmo até no jeito de falar.”

Nem precisaria dizer, mas ilusões não tenho,  sobretudo após a  perda do endereço da fonte da juventude. Então,  sexagenário que sou  nas proximidades do final da década e de bem com  a indesmentível aparência física correspondente, - se me dizem que estou como há 15 ou 25 anos, isto não poderia  significar  que eu já fosse desse jeito naquele tempo?

Bem, tenho achado melhor nada esclarecer...

***

P.S: “Mínimas Confissões” na 56ª Feira do Livro de Porto Alegre:
Livraria Maneco: banca  9 – Andradas.



quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Feira do Livro de Porto Alegre

(clique na imagem para ver maior)

Est Edições, os premiados, os apoiadores 
e Antônio Suliani (org. da edição)
convidam para o lançamento e sessão coletiva de autógrafos 
do livro

Construtores de História: 
Famílias Italianas do RS,

com os textos premiados no
I Concurso Frei Rovílio Costa: Famílias Italianas do Rio Grande do Sul
Dia 6 de novembro de 2010, sábado, às 14 horas
Memorial do RS. 1º andar -  Sessões de Autógrafos


Sua presença será incentivo e honra
aos premiados e aos ideais do Homenageado.

    *   *   * 

Como autor de uma das  histórias selecionadas pelo Concurso Rovílio Costa, gostaria de ter a alegria de sua presença.

Cordialmente,
Almiro Zago

sábado, 9 de outubro de 2010

O café da vida

Especial para o Semanário “Tempo Todo”, de Caxias do Sul

Almiro Zago

            Ainda não se escreveu, nem se disse tudo o que de bom representa o café em nossas vidas. Ou, pelo menos, na vida de quem o ama.
            De minha parte, venho apreciando cafezinho desde quando se escrevia com acento grave no “è”. Terá sido psicológico, mas  depois que a palavra  perdeu aquele sinalzinho, de início, sentiu-se menos sabor na xícara...                           
            Nunca esqueci o primeiro cafezinho. Foi numa tarde de sábado, com  vários colegas, todos adolescentes,   no Café Comercial,   no centro de Caxias do Sul.
            Afinal, ser homem  também era tomar cafezinho num reduto masculino de adultos.
            E, lá, num colorido painel na parede, conheci as primeiras teorizações sobre a bebida que os   árabes   ofereceram ao  mundo ocidental: “O bom café deve ser puro, como um anjo; doce, como o amor; e quente, como o inferno.”
            Fui levando a sério esses   mandamentos, mas só o primeiro, por essencial e verdadeiro, tem resistido. Todavia,  depois de incontáveis queimaduras na língua  convenci-me de que não precisava radicalizar tanto na temperatura. Mais tempo iria passar até perceber que  era apenas  metáfora o “doce  como o amor”. 
            Bem apreciar um café, sentir-lhe o aroma, a intensidade do sabor envolve um processo  de    paciente educação do paladar, ultimamente facilitado pela poética  adesão de livrarias. Aliás, em 1970, coisa rara, então, podia-se degustar café na Livraria Ramos.
            Como acontece com o vinho,  a doçura corresponde ao primeiro estágio a ser superado, pois, desculpem-me por dizê-lo, mais não faz do que mascarar o café ruim. E do bom, oculta os melhores predicados.
            Por isso, chega-se ao ápice do aprendizado, degustando o cafezinho   em seu estado de pureza e autenticidade. Embora não seja  o pico do Everest, poucos têm conseguido chegar lá, como eu cheguei, não sem algumas  recaídas, reconheço.
            Porém, o importante é que à volta do café fumegante  estejam pessoas curtindo momentos de amizade,  de satisfação, desses que  ajudam a fazer  a felicidade, que  às vezes aparecem por vias  tortas,  como me aconteceu, de uma feita,  longe daqui.
            Os cafezinhos sendo servidos, e, à minha vez,  notei que não viera o que pedira:
            - Mas  eu pedi café expresso...
            - Está bem - disse a mulher, recolhendo a xícara.
            Observando que se tratava de um cappuccino original, mudei de ideia.
            -  Senhora, pode deixar, eu tomo esse mesmo.
            -  Não, não. O sr. pediu café expresso, e vai tomar café expresso - escutei  de sua voz em   tom  autoritário.
             E vencidos uns dois minutos, sentindo-me um tanto masoquista, encontrei-me a cumprir a severa ordem, quero dizer, sorvendo um incomparável cafezinho italiano.
                                                    ****

domingo, 5 de setembro de 2010

E a luz virá da cadeia

Almiro Zago

Dia desses, sentado à mesa de janela num restaurante, estava eu a ganhar calorias, enquanto diversas pessoas tratavam de perder a suas numa academia, no outro lado da rua.

Perto de mim, num grupinho, o assunto do almoço era a calamitosa situação dos presídios, a promiscuidade e a ociosidade dos presos. Tive  ímpetos, contidos a tempo, mas libertos agora, de a eles apontar  original alternativa para amenizar o problema: levar academias de ginástica aos reclusos, dando-lhes a chance de malhar.

Intimamente, divertia-me com o achado, e ao notar um sujeito que pedalava num aparelho, bolei uma academia equipada só com bicicletas estacionárias, providas de  dínamo, mas sem  farol.

Se alguém esqueceu, ou não sabe,  dínamo, eu pesquisei,  é um pequeno aparelho que gera corrente contínua convertendo energia mecânica em elétrica, através de indução eletromagnética.

Algum tempo depois, em madrugada de insônia,  surpreendi-me a imaginar  os encarcerados pedalando para manter a forma física e produzindo  energia elétrica.

Não seria uma coisa  bacana? Veríamos aí, ao mesmo tempo, a realização do ideal romano - “mens sana in corpore sano”, mente sã em corpo sadio - e toda a massa carcerária com possibilidade de ocupação útil, remunerada e, ainda, com direito à remição da pena pelo trabalho.

Está bem, podem dizer que seja bobagem, mas confesso minha irresistível simpatia   pela ideia.

Afinal, pouco custa pensar em  novo jeito de lidar com  tema tão explosivo.  Depois, uma reflexão isenta nos revelaria a sociedade refletida nas imagens das casas prisionais   pela  incúria, leviandade,  indiferença  para com o lado mais dramático da imperfeição humana,  inseparável  da convivência em comunidade. E tanto maior quanto mais doente o tecido social.

Convenhamos, nesse quadro gris, um projeto como este, por quixotesco que pareça,  mais interessante será  do que a inércia e a ausente criatividade. Depois,  para a sua adoção, mais não reclamaria do que a  vontade política dos agentes estatais, mesmo  diante da sempre alegada carestia de recursos.

Pois não andam a falar de parcerias? Estão aí as  empresas distribuidoras de energia elétrica, que bem poderiam construir instalações junto a presídios e penitenciárias e equipá-las para funcionamento das, digamos, academias, verdadeiras  mini usinas de   propulsão humana.

Claro, haveria   problemas técnicos a resolver, o que, entretanto, não demandaria maior cota de massa cinzenta  a dois ou três engenheiros das áreas  envolvidas.

Vejam só: num presídio com quatro centenas de homens, cada um exercitando-se 30 minutos por dia, ter-se-ia 200 horas diárias de produção de energia elétrica. Se o dínamo de uma bicicleta comum gera luz suficiente para iluminar o caminho noturno de um ciclista, pode-se bem ter uma noção do que representariam 400 faróis.

De minha parte,  devidamente citada a fonte, daria de graça a ideia, o que não significa renúncia a eventuais recompensas em moeda corrente nacional.

Mas quanto ao exercício físico dos reclusos, anotem bem a ressalva: pedalar fortalece a  musculatura das pernas. Aí, se eles fugirem, quem os alcançará?
                                                   ***

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Se meu DKV falasse*

 Almiro Zago


Andaram inventando um automóvel que pode ser convertido em avião, tipo de novidade que já não me comove. Diz meu lado cético que teremos mais uma geringonça a poluir no solo e nos ares.

Nunca terei um,  mesmo porque  jamais se igualaria em fascínio ao meu primeiro carro, o simpático  quatro portas bordô, teto creme, motor a dois tempos, alavanca de câmbio no volante.  Novo, meu DKW-Vemag fora há  anos, mas   nunca mais velho do que eu. Porém, era o veículo  ao alcance do meu bolso.  E oferecia-me o essencial: o valor utilidade. Claro, aquela aparência que transfere status  o seguia a muitos centímetros  do para-choque  traseiro. 

Ah... Foram no  DKW  aquelas primeiras viagens de carro às praias de   Torres e   Paraíso, e à Praia Azul com direito ao atoleiro de areia para entrar e sair da garagem.   E também a Gramado e Porto Alegre, estacionando na  Andradas, diante do que fora o Grande Hotel.

Auto valente foi o meu DKW.  Em gélidas noites caxienses, aquecia-se à luz das estrelas e amanhecia pedindo água quente para derreter o gelo sobre seu  para-brisa.   Acreditem, na beira da estrada  nunca me deixou; quando muito, negava partida que uns empurrões   resolviam.


Uma noite na memória


Entretanto, uma certa viagem iria marcar a história de bravura e resistência do meu, nem tão flamante, DKW-Vemag.
A noite era de fevereiro. Pelas  nove e meia,  um  motivo de grande urgência   reclamava a imediata ida do casal à Santa Maria, em percurso de uns 430 quilômetros. Mas à noite, ainda não guiara em estradas,  salvo nas partidas, cedinho,   antes do amanhecer. (Lembram de “A hora antes do amanhecer”, de W. S. Maughan?)

Pois, ainda pelas pelas ruas de Caxias, um insolente tac-tac apareceu no compartimento do motor. Num posto de gasolina, nada descobriu-se sobre a sua origem. Como no mais o veículo  estivesse em ordem, fomos embora pela RS-122,  novíssima e bem sinalizada.

Descida a serra, seguíamos  tranquilos pelo vale até o susto que nos pregou um degrau no piso, bem na entrada da ponte sobre o Rio Caí. Vencido o solavanco - feio de estremecer, o DKW, seus viajantes e o  tac-tac seguiram ilesos.  Mais não fora do que reles aviso de desafios sequer imaginados.
O primeiro deles deu sinal já na passagem por São Leopoldo, na forma de ligeira alteração  da temperatura do motor, mas que chegou às alturas na periferia da  Capital. Só não esquentou o barulhinho.

Vazamento na  mangueira do radiador – diagnosticou um frentista   na breve parada para reabastecer o veículo. Isso demandaria  frequente  reposição de água.
Com as luzes de Porto Alegre à esquerda e a trilha sonora do  tac-tac de fundo,  cruzamos a ponte sobre o Guaíba, rumo à BR-290. 

A madrugada iria surpreender-nos em estrada solitária, até do luar esquecida. O olhar o céu estrelado, a prudência proibiu.
  E como  jovem ao volante não sente sono... íamos em frente ligeirinho, mas nem tanto. Estável o  aquecimento do motor e constante o tac-tac,   tudo parecia sob controle.


A gillette mágica


Porque o posto programado estava às escuras,  cortei dos planos um “pit stop". Talvez faltasse pouco mais de meia hora para o clarear de um dia de verão, quando adentramos ao caminho de São Sepé.  E a  alguns quilômetros, abriu-se aos faróis  a via  alargada  à espera de asfalto. Todavia, implicante, o indicador de temperatura do motor passou a revelar movimento. O medo não me aconselhou parar. Entretanto, mudou de ideia,  passados alguns minutos, ao chegar o ponteiro à marca máxima. 

Desci e fui  direto levantar o capô do motor, e lá de dentro espalhou-se   quente uma nuvem de vapor, bem do jeito que vira  em filmes americanos.  Mas com a sutil diferença: eu não tinha dublê.
Iríamos ficar a pé?

O jeito era esperar. Esfriadas - minha cabeça e a máquina, outra vez  água para o arrefecimento. Mas água só num riacho  na baixada, para onde deixei rolar o  DKW em ponto morto;  morto também parecia  o tac-tac.

 De uma  câmara-de-ar  sobressalente, com uma incisão de gillette, única arma a bordo, improvisei  um balde para recolher água que levei ao  depósito do radiador. Dada partida, o motor, pelo tac-tac imitado, reagiu bem.  Foi assim que o sol nascente nos viu, em estrada molhada, alcançar São Sepé. E lá,  em precária assistência, mandei enfaixar a mangueira furada.       


Treinando para um rally 

Santa Maria estaria logo ali, mas dei com a estrada em obras, e havia chovido muito no dia anterior. Nunca vira tanto barro. Veículos, apenas caminhões: uns sendo desatolados por tratores, outros indo e vindo deixando fundos trilhos. E por eles o DKW, firme na segunda marcha e pressão constante no acelerador, avançava. 

Aliviando a tensão, vinham trechos com a base para asfaltamento, mas logo apareciam outros “ensaboados”, levando o carro à dança de bêbado, no ritmo inconfundível daquele miserável tac-tac. 

Finalmente, o DKW, qual bólido da Fórmula 1 rumo à bandeirada da vitória, venceu o percurso final em chão favorável. 

Então, perto das oito horas daquela manhã e vividas intermináveis nove horas de viagem, de nervos abalados e olhos semiabertos, entramos em Santa Maria da Boca do Monte. 

Superados os compromissos, levei o DKW a uma oficina para revisão e reparos. Terminado o serviço, perguntou-me o mecânico com ar de espanto: 
 - A placa do teu auto é de Caxias, mas não vai me contar que tu veio de lá com aquela batidinha que não parava? 
Confirmei contando-lhe nos pormenores os obstáculos enfrentados. 

Aí veio o lance de suspense da história: só por milagre conseguira a proeza, pois o tac-tac fora produzido pelo movimento do suporte quebrado do alternador que poderia ter caído a qualquer momento. 
Por delicadeza, acredito, o sujeito deixou de dizer que eu tivera mais sorte do que juízo. 

Começando a escrever este texto, veio-me à lembrança um dito popular, mais ou menos assim: “carro velho dá somente duas alegrias ao seu dono: uma quando o compra, outra quando o vende”. 

Nego-me a autocensura de deletar a frase anterior, porém, sinto roer-me o remorso por tamanha ingratidão para com meu DKW-Vemag, 1962, o carro velho das três alegrias. 

Mas como nem tudo pode dar certo, o famoso Rally Paris-Dakar daquele ano, por falta de patrocínio ao piloto, perderia um grande competidor...


* Título inspirado no filme “Se meu Fusca falasse”.

sábado, 26 de junho de 2010

“Un attimo”, por favor

Almiro Zago


Antes da gente se chatear com outra pessoa,    sugere a sabedoria, se lhe damos chance,  que procuremos saber a razão que a leva a  agir desse ou daquele modo desagradável ou aparentemente prejudicial para nós.

Sempre valerá a pena, pois esse mínimo cuidado pode conduzir  à recíproca compreensão  e lançar pontes de cordialidade no convívio social, por onde passarão os bons gestos e atitudes, desses que  contam, sim, para o dia feliz de cada um.

E além do  mais, essa desejável conduta poderá nos livrar   de constrangimentos ou  situações desconfortáveis.

Se a relação desenvolve-se ao telefone, na ausência do face a face, por suposto, tudo fica mais complicado, motivo a mais para cultivar a virtude da paciência e a boa vontade.

Pois, nem faz tanto, precisei fazer um telefonema a um conhecido italiano, que viria tornar-se um bom amigo. Assim, disquei, ou melhor, digitei a carreira de algarismos que compunham o número, e, lá do norte da Itália, uma voz de mulher atendeu:
- Pronto!
- Bom dia, sou fulano de tal, de Porto Alegre, Brasil. Gostaria de falar com o seu Renato. Ele está?
- Não, não se encontra. Está trabalhando, a essa hora.

Interessado em salvar a dispendiosa ligação internacional, e  sendo simples o que pretendia, perguntei-lhe:
- A senhora poderia fazer a gentileza de anotar um recado pra ele?
- Sim, certamente, mas aguarde um "attimo", pois preciso apanhar uma caneta. Passado um tempinho:
- O senhor pode dizer...

Passei, então, a ditar a primeira parte, explicitando o nome de certa pessoa com três palavras. E ela:
- Um "attimo", por  favor.

Seguiram-se nem sei quantos segundos de silêncio até:
- Pode continuar.

E eu prosseguia com o breve texto, porém, a cada quatro ou cinco palavras:
- Um "attimo"...

Silêncio de muitos átimos  e:
– Pode prosseguir...

Seria como se houvesse uma deixa para intervenção de alguém, sem, contudo, consumar-se.
Ia ficando curioso, queria entender o que se passava do outro lado da linha, além-mar, com a gentil senhora.

Meu ditado era lento, de frases  simples em ordem direta. Porém,   mal conseguia dizer meia dezena de palavras,  quando muito, sem   conceder um “demorado attimo”.

Iria ela ao dicionário conferir o significado dos termos em língua italiana por mim empregados?  Ou estaria a degustar  seu espumoso "cappuccino" ?

Verdadeiramente,  me sentia cada vez mais intrigado com o festival de solicitações de momentos  de pausa, nem tão instantes, a bem da verdade.
 - Ah, agora, falta apenas o número do telefone que o seu Renato me pediu:  51 3224...
- Um "attimo", por  favor, - e de novo  repetia-se o ritual.

Não sem antes ceder o derradeiro "attimo", disse   os algarismos faltantes, sentindo a frustração de sequer ter conseguido imaginar  um motivo crível para que  minha atenciosa interlocutora  necessitasse de tantas paradinhas, seguidas de outros tantos silêncios. Mas, finalmente: 
- Muito obrigado. A senhora foi muito gentil.
- Por nada. E o senhor me desculpe por ter interrompido tantas vezes. É que eu só tenho um braço.

Mesmo convencido de ter sido coerente com o que escrevi lá em cima, passou-me um sentimento de culpa ao perceber a trabalheira que causei à pobre italiana: escutar minhas palavras - pedir-me um tempo - descansar o telefone - apanhar a caneta - escrever – voltar a pegar o telefone...  E numa cansativa repetição.  Nunca antes, acreditem, conhecera em toda sua extensão o adjetivo desconcertante.

Já quanto à conta telefônica, se querem saber,  nada economizei; bem ao contrário.

P.S.:
1 -Tenho lido com muito carinho os amáveis comentários de leitores, ao pé de meus textos. Isso me deixa feliz. Muito obrigado a todos.

2 – O livro “Mínimas Confissões”  pode ser obtido pelos sites:
www.letraevida.com.br (Fone/fax:51 3384.8579)
www.livrariacultura.com.br
www.maneco.com.br 

Nas livrarias:
Caxias do Sul: Maneco - Mercado de Idéias - Arco da Velha - Rossi.
Porto Alegre: Cultura - Nova Roma e Cameron,Bourbon Ipiranga.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Amigos e histórias de amor



Almiro Zago

- Paixão à primeira vista:                                                                                                                   
                                                                                        
Na bonita tarde de domingo, faceiros íamos, o Leo e eu, à  quermesse,  uma festa de igreja no bairro. Mas esclareço: outro era o verdadeiro nome dele. Nas conversas, entrava de tudo, inclusive e  especialmente  a ideia de arranjar namorada; afinal, aos 16 anos, como não conversar sobre isso?

Nem bem chegamos, e o Leo, sem esconder o entusiasmo, foi apontando certa guria de um grupinho, revelando-se caído por ela. 
- Qual, mesmo?   A comprida e magra, mais alta do que tu?
- É...
Claro, havia falado meio brincando, sem referências à beleza ou feiura da moça que, aliás, tinha um porte bem do estilo das modelos de  hoje em dia.
Aconteceu que ele ficou magoado, e eu custei a perceber a extensão do significado da sua lacônica confirmação.

Da festa, nada de interessante ficou para recordar. Porém, passadas umas duas semanas, encontrei o meu amigo de mãos dadas com a "comprida e magra", agora, sua namorada.

Pois não é que ele nem olhou pra mim?! Bem, depois daquela minha insensível franqueza, logo nos instantes em que ele provava a paixão à primeira vista, chateado é que eu não poderia ficar.

A despeito disso, ficaria tudo  igual entre nós, sem que me tivesse  retratado do infeliz comentário  por  nunca ter aparecido um momento favorável. É verdade, porém, que pouco nos víamos.

Mas nossa amizade vinha lá dos nove ou dez anos, quando o Leo, dono de uma bola de número 3, organizava um timezinho de futebol. Embora não pertencesse ao seu grupo, era sempre convidado para reforçar  sua equipe nas partidas mais importantes. Foi esse o período em que vivi dias de glória como goleiro, lá pelo final da infância a caminho da minha adolescência.

Já o Leo, desde cedo, perseguia um sonho: tornar-se mecânico de aviões. Tanto se preparou para isso que, chegando à maioridade, foi admitido a trabalhar nas oficinas da Varig, em Porto Alegre.

Sim, casou-se com a moça magra e alta, e com ela foi viver na Capital.
Dali para frente, nem me lembro se foram dois ou três anos, mas o certo é que não mais os veria com vida, pois a morte os arrebatou num acidente de carro em viagem a Caxias do Sul.

Nunca antes vira um casal sendo velado, coisa, para mim, inimaginável.
A patética cena, a meus olhos,  significava  o final de uma história de amor, da qual fora eu testemunha de seu nascimento.
Pena que tenha faltado com a cumplicidade de amigo.


II - Uma certa casa tirolesa:

Era o Jairo* um apaixonado  por  música e   filmes  mexicanos. Isso, numa época em que os cinemas brasileiros fartavam-se na exibição de películas com a marca Pelmex.  O moço, por exemplo, além de conhecer o repertório do, então, famoso Miguel Aceves Mejía, cantava e assobiava   as canções que o rádio tocava.

Seguidamente, mas não apenas nessas ocasiões, nos encontrávamos na volta para casa; eu, da escola noturna; ele, do cinema. E no caminho, contava em   detalhes a história do filme mexicano que havia assistido; falava dos atores e, invariavelmente, confessava-se atraído pela atriz principal.

Haveria de conhecer o México, - repetia com viva esperança.  E sonhos nunca faltam a quem, como ele, beirava os 17 anos, dois a mais do que eu.

Vencendo nosso percurso, em dado ponto nos separávamos: o Jairo pegava um atalho, ladeando uma casa nova, de arquitetura tirolesa, ou com essa intenção construída.

Fosse durante o dia, quem por ali passasse teria a seu alcance a  isolada moradia  de   janelas   abertas e, às vezes, com sua dona debruçada numa delas. Nunca a vira de perto, porém seria uma viúva, o que, para a minha pouca idade, significava mulher velha.

Mas aconteceu que o Jairo deixou de aparecer por uma semana, duas, três...
Teria ido ao México, sem nada me dizer?

Por ele, a outro amigo, perguntei.
- O Jairo? Tu não vais acreditar; ele foi embora com a viúva da casa tirolesa...
- Com uma velha?
- Não, não, é uma viuvinha nova.

Se os fugitivos foram felizes para sempre?
Como saber?
Do meu amigo, nada mais soube.

Mas pode dar-se que, debaixo de um "sombrero", esteja ele com sua viuvinha curtindo as praias de brancas areias em Acapulco.

*Nome fictício.