terça-feira, 22 de abril de 2008

As tortuosas vias azuis

Almiro Zago



Em Mínimas confissões, crônica que veio a emprestar seu título a uma coletânea, falei sobre "defeitos de fabricação", em que acabei admitindo pelos menos dois deles. Bem, depois disso, não sem um certo desconforto, decidi declarar,
francamente, outro defeito de origem, embora fosse quase de domínio público. Seria isso uma espécie de terapia.

Quem já não ouviu algo do tipo: "o que escrevo, eu e Deus entendemos, mas, às vezes, somente Ele sabe"? Pois a vida fez de mim um propagador dessa frase, invariavelmente pronunciada diante do embaraço de situações concretas.

Ainda que me digam mil vezes que muita gente têm caligrafia igual à minha, jamais me sentirei consolado. Levarei à tumba (ao crematório?) a desdita de ter letra feia. Ao longo dos anos, em vão esperei escutar palavras verdadeiramente confortantes para o meu ego, todavia, mais não escutei, nem me contaram, do que: "a letra é feia, mas tem conteúdo", "que pena que a letra não ajuda", "apesar da caligrafia é um sujeito inteligente".

Por favor, ninguém pense em jogar a culpa sobre as professoras que me alfabetizaram. Coitadas. As estratégias pedagógicas ao alcance elas esgotaram, porém minha mão direita e meus dedos recusaram-se a cooperar. Durante os cursos que freqüentei, adquirida alguma familiaridade, professores e colegas chegavam a entender os meus escritos.

Houve uma exceção, é verdade. Um professor do primeiro ano do Curso de Direito devolveu-me a minha primeira prova encimada por um quatro, contrariando a expectativa de nota sete ou oito. Ao corrigi-la, havia ele simplesmente desistido de ler a redação que valeria quatro pontos. Feita, pessoalmente, a devida tradução, vi mais três pontos e meio acrescidos ao resultado. A partir de então, passei a mascarar o problema com letra de imprensa em testes, exames ou cadastros.

A despeito da minha indisfarçável frustração, sempre gostei de caligrafia bonita, de fácil compreensão. Ao meu olhar, um texto assim é uma verdadeira obra de arte. E admirável seu autor.

Sei, também, de meus sérios rivais no concurso de caligrafia mais feia e ilegível. Perdi a conta das tantas receitas médicas decifradas em farmácia. E houve casos insolúveis em que precisei retornar ao médico para resolver o problema.

Há, é certo, segundo minha assessoraria de artes, sutil diferença entre letra feia e ilegível. Numa só escrita podem estar presentes os dois qualificativos. Porém da ilegível periga surgir belo resultado estético, como se pintura moderna fosse.

Pior que tudo, letra feia é mais fácil de falsificar, o que já me aconteceu.

Acho que alguma força sobrenatural deve ter fortalecido o meu espírito de superação na adolescência e passagem para juventude. É que cheguei a manter razoável volume de correspondência sem aflição pelo aspecto da minha escrita. Claro, tive de neutralizar os ouvidos a duras expressões como "teus garranchos", ou "teus hieróglifos", quando suavizavam.

Lembro-me de ter trocado muitas cartas com um amigo italiano que fora morar em outra cidade. Suas respostas, invariavelmente, principiavam mais ou menos deste modo: "Depois de intermináveis horas de trabalho, aplicando técnicas de Champolion", consegui ler o que me escreveste." Intrigante era que ele chegara ao Brasil aos quatorze anos, aprendera com facilidade o português, escrevia bem e com letra invejável.

Contornando o vexame, há muito tempo, a máquina de escrever e, depois, o computador, têm sido meus aliados, mesmo contrariando o bom-tom que recomenda sejam de próprio punho as cartas.

Como se não bastassem os naturais aborrecimentos que a deficiência traz, volta e meia vem a mídia publicar que a personalidade de alguém pode ser conhecida pelos seus manuscritos. Ainda por cima, dizem que a escrita feia revelaria diversos transtornos emocionais de seu autor. Isso é uma perversidade. Onde ficou o politicamente correto?

Cansei de exercícios de caligrafia. Quando vou escrever algo menos relevante, uma bobagem, coisa rara, penso, até que sai razoável. Mas se devo concentrar-me no conteúdo, saem bem as três ou quatro primeiras palavras, já o resto... É sempre desse jeito, quer esteja calmo ou ansioso, embora seja torturante escrever em situações em que domina a emoção. E esse drama vivenciei recentemente quando da sessão de autógrafos do lançamento de meu livro, Mínimas confissões.

Acalentava o desejo de escrever algo criativo, especial para cada um dos meus leitores. Mas ao terminar, à minha frente apareciam tortuosas e ilegíveis vias azuis traçadas pela errante caneta. Desisti de um "recall" do livro ao dar-me conta de que só por milagre poderia fazer melhor.

Quem sabe a assistência técnica possa decifrar as dedicatórias.

5 comentários:

Anônimo disse...

Que desassossego esta tua letra, hein Almiro? Rendeu uma ótima crônica e, sabe, outro dia fui a um lançamento literário e me deparei com um dos autores da obra(era uma coletânea)que autografava com um carimbo, ele escrevia uma mensagem meio indecifrável e carimbava, deixando legíveis seu nome e endereço eletrônico.
Abraços!
Karen.

mulher de sardas disse...

Esta deliciosa crônica do Almiro me incentivou a revelar um segredo: o meu exemplar de "Crônicas: o vôo da palavra" carrega na folha de rosto uma carinhosa dedicatória de Walter Galvani... a qual eu nunca entendi.

No dia em que ele assinou corri ansiosa para ler as palavras, mas elas eram indecifráveis e eu jamais tive coragem de pedir ao mestre que desse fim no mistério.

Talvez porque ainda vai virar história!

Anônimo disse...

A nossa colega "mulher de sardas" e o garrancho do Almiro, que ele carrega pendurado no pescoço psicológico da formação de sua personalidade, finalmente me dão força para uma revelação que a Camila já constatou e agora torna pública: minha letra é um garrancho inominável.
Muitas e muitas vezes me defrontei com o problema de tentar descobrir o que é que eu havia anotado diligentemente (e apressadamente) e agora nem sabia mais o que era.
Quanto à dedicatória da Camila, espero vê-la um dia para tentar "traduzir-lhe". Espero não tê-la esquecido. Mas, quem escreve assim, com letra horrível, não precisa se preocupar, amigo Almiro.
É traço de bom caráter. Li isso uma vez, há muito tempo, tomei nota de quem o dizia, mas depois não consegui ler o nome do autor...
Não entendi minha letra...
Um abração
Walter Galvani

mulher de sardas disse...

Viu só, Almiro?

A letra indecifrável parece ser uma constante entre os bons escritores...

Precisamos de uma opinião científica sobre o assunto, antes que as meninas do grupo, com letra de professora, se desestimulem!!

hihihihihi

Camila.

Anônimo disse...

Estava começando a reconhecer alguns sinais de conforto proporcionados pela patética revelação de Walter Galvani e, embora não me sinta incluído, pelos comentários da Camila. Mas... falam, apenas, de letra ilegível. Já o meu caso é, também, de caligrafia feia...
De qualquer modo, apreciei a intenção de solidariedade. Claro, os gestos de simpatia ajudam a tornar a vida mais leve, não é mesmo?
Almiro